NOTA DO CRÍTICO
Valparaíso, uma das cidades mais populosas do Chile. É desse cenário urbano que surge um novo nome no circuito musical global. Três anos depois de sua concepção, o quarteto El Significado De Las Flores escolheu o início do segundo trimestre do ano para se lançar oficialmente no mercado com El Efecto Nodriza, seu álbum de estreia.
Uma melancolia floral começa a se erguer no horizonte a partir de uma camada de neblina adocicadamente perfumada. Enquanto a guitarra base de Pablo Rodríguez León vai acordando de um sono embriagante e nostálgico, a bateria de María Pizarro Gallardo, com sua linearidade amaciada no compasso 4x4, vai fornecendo sutis retomadas de consciência enquanto os rompantes da guitarra solo de Patricio Guzmán Adonis sonorizam o ato de abrir os olhos. Com uma estética setentista, mas que não adorna a acidez da new wave ou a industrialidade do synth-pop, El Significado De Las Flores apresenta uma mistura de indie rock e dream pop enquanto, com sutileza, apresenta um personagem imerso em uma profunda falta de noção de pertencimento. Com uma interpretação gélida, como se o sofrimento estivesse completamente entorpecido, Adonis dialoga sobre a necessidade de se sentir representado, pertencente e contente consigo mesmo. El Significado De Las Flores é como um pedido quase mudo de socorro por alguém que sofre sua identidade, mas que guarda, no fundo de sua essência, a força necessária para alcançar sua liberdade e de fazer sua voz ouvida. É a ilustração da batalha pela aceitação de ser diferente das massas. Um torpor lancinante cuja voz pede apenas para ser compreendido e acolhido.
Enquanto na primeira canção o personagem lírico estava embriagado em torpor, logo na introdução da nova paisagem ele exala, extravasa e exalta seu sofrimento. Graças a uma guitarra capaz de representar tal agonia, o amanhecer de Pieles é ainda mais sensitivamente doloroso. Lacrimal, tal trecho melódico proporciona ao ouvinte até mesmo a audição das linhas do baixo. Apesar de simples e curtas, elas, a partir de Javier Vargas Hernandez, soam como uma fraca frequência de batimento cardíaco. Uma representação da fraqueza emocional do intérprete. Conforme a canção vai amadurecendo, o próprio horizonte vai ficando mais claro ao ouvinte, que se percebe no alto de uma colina rochosa observando o além-mar abraçado por um céu acinzentado. Com tom soturno, Pieles é a laceração do emocional, é onde a solidão engole qualquer tipo de motivação e força interior. Assim como em El Significado De Las Flores, Pieles escancara uma má relação com o passado de tal forma que as memórias consomem, corroem, machucam. Oprimem.
É uma mistura de caos, de ansiedade enigmática, de desespero censurado. Da súplica por atenção, por consolo e, principalmente, por carinho. Com uma maciez contagiante, o azedume da guitarra base se confunde entre a melancolia e a nostalgia que instauram da composição melódica. Em Escarcha, El Efecto Nodriza atinge seu ápice. Sombria, melancólica, chorosa, desesperançosa. É uma música em que a culpa é o principal motivador da dor e da desilusão. Um gatilho para a baixa autoestima e para a autossabotagem. Escarcha reforça a sensação de ausência de pertencimento de um personagem intensamente sofredor, cujo coração enrijeceu pelas vivências negadas de um passado obscuro.
Com uma guitarra de riff trotante e levemente azedo, a canção apresenta um compasso que, a partir da repetição uníssona dos golpes entre surdo e caixa, ganha uma curiosa e ligeiramente aliviante da fuga do sofrimento incessante transpirados pelas faixas anteriores. De caráter mais transcendental e calmante, Selva Y Semilla tem presença obrigatória do baixo na aquisição de uma textura mais grave ao dulçor melódico. A presente música é onde o personagem se conforma da dor e de sua condição sofredora inevitável. Não à toa que ele admite encontrar na morte a solução imediata para seu caos emocional. Selva Y Semilla é quase como um romance trágico de uma pessoa só. O resultado da negação do sofrimento e o último grito desesperado por uma conclusão.
A estrutura, junto ao tom do riff da guitarra, fazem com que o ouvinte rememore as linhas de baixo desenhadas por Luciano Garcia na introdução de Um Minuto Para O Fim Do Mundo, single do CPM 22. De maciez soturna e melancólica, a introdução amadurece com uma estética linear em que, novamente, o baixo tem presença protagonista na construção da precisão rítmica. Na forma de um indie rock, a canção surge com uma interpretação vocal que, apesar de soar suave, traz uma inquietação questionadora latente. É assim que El Rosto En Las Piedras evidencia o retrato de uma face que causa vergonha e decepção. Uma personalidade hoje intensamente negada e que desperta intenso sofrimento. A culpa é, novamente, um gatilho para a desmotivação e a baixa autoestima, de forma a ressaltar o desejo de expelir de si toda essa sujeira que impregna na pele de um interlocutor incapaz de aceitar o passado.
Enquanto bateria e baixo se unem em uma sintonia groovada, sons tilintantes do sintetizador pairam pelo ar, criando uma atmosfera de energia leve e oriental. A estética que se constrói na introdução é quase como se o ouvinte se percebesse estar frente a um espelho que lhe mostra cinematograficamente a vida que lhe foi ofertada viver. Mais introspectiva em relação às demais faixas, Memorias narra a superação, o novo passo, um novo horizonte. A vontade e a motivação que faltaram tanto em Selva Y Semilla quanto El Rosto En Las Piedras. Memorias reforça mais uma vez a essência de um ser órfão de representatividade e que deixa, gradativamente mais clara, a intenção do El Significado De Las Flores em discutir a veia social e a política que a governa.
Com uma guitarra de riff reconfortante e surpreendentemente acolhedor, a introdução oferece ao ouvinte a fuga do sofrer e uma súbita sensação de alegria. O instrumental que amadurece no amanhecer é de uma leveza diferenciada, capaz de dar aconchego e um lar às lágrimas. Uma espécie de porto seguro que mostra um horizonte sem melancolia e com a possibilidade de mudança. De vida. De certa forma, Amiga ainda é envolta em determinado grau de melancolia, uma emoção que permeia a relação do personagem com o luto, mas não um luto sobre outro alguém. Um luto sobre si, sobre uma parte do indivíduo que está morta, uma parte que dá falta pela coragem de remexer os confins do emocional de um interlocutor profundamente abalado.
Com um suspense capaz de causar calafrios de insegurança misturados com uma estranha noção de ansiedade alimentada pela expectativa do que será trazido em seguida, a introdução é precisa, encorpada e de energia hipnótica. Trazendo em sua estrutura moldes semelhantes ao amanhecer de The Bitter End, música do Alter Bridge, El Acto Final ainda mais que Amiga por trazer uma vertente rítmica até então inexperimentada em El Efecto Nodriza. Guitarra amplamente distorcida e suja, dissonância e abuso dos graves. Com mergulho no stoner rock, El Acto Final é uma faixa em que o lirismo sugere inúmeras facetas interpretativas. Primeiro vem a noção de anonimato, algo que casa até mesmo pelo enredo do álbum e pelo incessante sofrimento de um indivíduo inquieto. Depois, reforçando o segundo ponto de vista de Memorias, ela parece dialogar com um viés de crítica política ao abordar a censura. Porém, o que fica de El Acto Final é o estopim da inconstância emocional, do ímpeto, do instinto e de um sofrimento atroz que leva a um estado de insanidade. É aí que o indivíduo percebe que ele próprio pode representar um perigo social por não controlar seus sentimentos explosivos.
Para muitos pode ser um trabalho difícil de se ouvir, mas, principalmente, de se interpretar. Todas as pessoas têm lacunas emocionais. Todas lidam, hora ou outra, com seus próprios demônios. É certo que algumas conseguem vencê-los, mas outras somente aprendem a conviver com eles. Porém, o que El Efecto Nodriza mostra é um personagem inquieto, intenso, insano e cujo alto grau de sofrimento lhe tira a racionalidade e a própria noção de mundo.
De dramaticidade latente, o trabalho é quase como uma narrativa linear em que cada faixa representa um capítulo na busca do personagem lírico pela compreensão, ou, pelo menos a tentativa de, de suas emoções ambivalentes. Nesse processo, o que chama a atenção é a dura relação com o passado, um período de vida que o interlocutor constantemente tenta negar ou esquecer.
É aí que se nota o grande peso da culpa no cerne emocional do personagem, um sentimento que, mais do que tirar a racionalidade, lhe tira a esperança e o faz se autopunir e a dar voz a uma destrutiva baixa autoestima. Com essa receita, o interlocutor mostra infelicidade e um sofrimento de origem muitas vezes enigmático pela própria censura inconsciente de um passado que guarda tais respostas.
Nesse processo, El Significado De Las Flores recorreu a Lucas Ibañez para inserir a sonoridade ideal que representasse esse devaneio sentimental. A partir da mixagem, então, o profissional uniu dream pop, indie rock e stoner rock em uma receita que, mais do que dar voz aos choros, gritos e agonias, tentou compreender a mente de um sofredor.
É aí que Junne Fuentes entra. Com sua produção, o profissional amarrou de maneira precisa tanto os elementos melódicos quanto o teor lírico das canções, as combinando e gerando uma energia irresistivelmente soturna, dura e melancólica. Uma amarração que não dá margem de salvação.
No mais, El Efecto Nodriza, apesar de parecer redundante em seu repetitivo torpor, surpreende também por trazer uma banda sem medo de honrar sua língua-mãe, o espanhol, e não optar pelo fácil caminho da americanização para buscar popularidade e a ideia de um sucesso mais palpável. É um trabalho de uma banda que ousa em experimentações extrassensoriais.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Ignacio Herrera, ela vem debulhada em uma tonalidade bege que beira o sépia. Tal escolha deixa a obra com uma energia reconfortante enquanto os oito recortes de flores que compõem seu centro sugerem calmaria, leveza e renascimento, algo que o personagem do álbum não conseguiu alcançar.
Lançado em 21 de abril de 2023 via Leviatán, El Efecto Nodriza é um trabalho intenso, dramático, soturno, melancólico e intensamente sofrido. É uma obra que desfila experiências extrassensoriais a partir do acompanhamento de um indivíduo profundo, culpado e cujo passado o assombra ainda mais que sua própria pele.