NOTA DO CRÍTICO
Pouco mais de um ano após o lançamento de seu último álbum, o cantor e compositor gaúcho Duda Fortuna retornou aos estúdios para produzir um novo material. Vendido por ele como um ‘suco de possibilidades’, DUAL, o sucessor direto de Noite Dos Abraços, se configura como o terceiro disco de estúdio de Fortuna.
O Sol está nascendo além das montanhas. Enquanto a grama, ainda úmida do sereno, vai recebendo, com delicadeza, seus primeiros raiares de luz, a vida começa a acontecer e as silhuetas da paisagem se tornam mais nítidas. Pela janela do quarto, por entre suas fendas, a luz natural invade o ambiente e desperta o indivíduo embaixo dos cobertores. Não muito longe dali, o cheiro de café recém-coado e o som da água escorrendo em delicados borbulhares por meio do coador sonorizam e perfumam todo o cenário. Tal frescor, tal delicadeza e tal fragilidade de uma pureza denotativamente bucólica são trazidos com gentileza e educação por uma conjuntura de violões que, pelas mãos de Ana Lima, se dividem entre sonares graves e serenos que se unem pelo dulçor e pelo senso de compaixão. Dali em diante, não demora para que a canção seja abraçada por um conjunto de vozes capaz de criar uma sintonia direta com essa energia. Fátima Farias, Duda Fortuna e Ana criam uma receita mista de texturas e sabores que vão da agudez ao dulçor. E é justamente pela união dessas três vozes que nasce o trunfo de Milonga Quero-Quero, a harmonia frágil, fresca e serena favorecida pelos diferentes timbres. Com estrutura minimalista e estrutura sertaneja, a canção, pela sua arquitetura geral, acaba tendo muito em comum com a energia doce e quase transcendental de Anunciação, single de Alceu Valença. É assim que Milonga Quero-Quero celebra a simplicidade, enquanto narra o processo de maturidade do personagem e seu desejo singelo, mas sincero, por independência.
Seu início ondulante quase consegue transportar, em virtude da sintonia inicial entre a bateria de Júlio Falavigna e o teclado de Cau Neto, o ouvinte de corpo e alma para uma Nova Orleans dos anos 20, no auge do jazz, não fosse pelo seu aroma campestre suave, mas presente, na base melódica. De estrutura curiosamente divertida, tendo o violão de Fortuna como grandes elementos melódicos, a canção soa sedutora e romântica, mas com toques de despreocupação e, também, mas, despropositados, de deboche. Adoravelmente solar e swingada na medida ideal, a canção traz um lirismo metafórico capaz de surtir em duas interpretações. O fato é que o romance, está presente, mas não necessariamente por um alguém carnal, mas astral. Afinal, em Novas Do Espaço, uma faixa que surpreende por apresentar um solo vivo em seu veludo sensual vindo do saxofone tenor de Marcelo Figueiredo, o protagonista se vê hipnotizado pela beleza heterogênea dos corpos estelares que moldam o universo.
É curioso, mas seu despertar causa um estranho senso de tensão. De certa forma, ele soa como uma espécie de prelúdio de que algo caótico está prestes a acontecer. Capaz de secar a boca com seu clima árido, os sonares tremulantes iniciais que causam esse desconforto súbito recebem, rapidamente, a companhia de um baixo que surge como um ser à espreita dando um bote silencioso em sua presa entorpecida. Simultaneamente, o tilintar da cúpula do prato de condução, apesar de aparecer em um viés calmo, é o elemento que permite, junto aos tímidos, mas presentes sonoridades percussivas, a primeira transformação estrutural da canção. Desse minimalismo estético, Tocar Outra Vez entra em um viés experimental que mistura o som de metais trazidos pelo teclado, enquanto a bateria vai desenhando uma base rítmica acelerada e de swing ácido. Entrando em um primeiro verso regido por um senso de embriaguez notável, Tocar Outra Vez acaba suavizando o cenário ao oferecer um refrão de estética fresca, macia, mas de paisagem agradavelmente convidativa. Musicalizada entre Fortuna e Marcelo Callado, a faixa, enfim, se mostra um produto veranista que inicia com versos líricos enigmáticos, mas que funcionam simplesmente como a metaforização do destino fazendo seu curso. Esse mesmo destino foi o responsável por instigar a curiosidade do protagonista em entrar em um ambiente desconhecido apenas por meio de um som agradável. Dele, bastou para que o personagem conhecesse um alguém por quem criou fortes interesses. Eis a força do acaso.
Seu início não é apenas festivo, convidativo, ou mesmo dançante. Ele é solar e irresistível. De início gradativo evidenciando seu efeito fade in, a introdução já vem regida por sonares percussivos pertinentes do agogô ao surdo trazidos por Callado que causam certo grau de frisson no ouvinte. Enquanto o sangue do espectador entra em estado de ebulição, a estrutura rítmico-melódica que segue é de uma curiosa maciez levemente ácida protagonizada pelo modo como a guitarra se apresenta. Ainda assim, o frescor é um elemento presente em demasia no ambiente e que é acompanhado por um mesmo grau de sensualidade fornecido pelo baixo de Paulo Emmery, o qual deixa a base melódica ainda mais saliente. Enquanto soa encorpado e forte em seu groove grave e simultaneamente bojudo, o baixo dá a liberdade ideal para que a guitarra, ao passo que a sonoridade como um todo vai se desenvolvendo e aprimorando, mergulhe em uma temática mais swingada e fofa capaz de inserir, mesmo que em doses suaves, noções de samba e, em menor grau, axé na melodia. No entanto, Outro Carnaval, por meio da interpretação tradicionalmente serena de Fortuna, traz um enredo lírico curiosamente melancólico ao entorno musicalmente festivo. Aqui, o vocalista apresenta um personagem atuante no cenário carnavalesco, mas que, por alguém, se perdeu em amores tão intensos que a superação do término não se tornou algo fácil de adquirir. Por isso, o Carnaval, em si, é o momento em que as memórias retornam e ele desabafa ao perceber que a cicatrização de um coração ferido pode levar tempo.
O repique com seu sonar típico é trazido por Giovani Berti como o elemento responsável de, com sua essência animada e festiva, puxar solitariamente a introdução. Enquanto o violão de Marcelo Granja surge em seu swing aveludado e rebolante, a acidez adocicada da sanfona é trazida através do teclado de Oiram Soares, que, consequentemente, insere, na canção, um aroma sertanejo contagiante. Porém, assim que Fortuna começa a preencher o escopo lírico, a canção se transforma em um adorável e contagiante ecossistema calcado em uma interessante mistura entre o xote e o reggae. Amadurecendo em um escopo rítmico-melódico consequentemente fresco e swingado, Sem Esquentar A Cabeça é uma faixa de estética serena que tem seu espectro harmônico engrandecido pela delicadeza do backing vocal de Milena Torres. Com essa atmosfera, a canção preza pela simplicidade, pela festividade entre amigos e, principalmente, pelo clima de desprendimento e despreocupação. Uma música que, portanto, auxilia no processo do ouvinte se distanciar dos problemas e ter suspirantes momentos de leveza.
Um sonar aparentemente percussivo é ouvido ao fundo já trazendo um espírito dançante e contagiante, ainda que imerso em um frescor tranquilizante. Cooperando com esse cenário de embrionário torpor, está a guitarra de Leo Sosa, que entra logo em seguida com notável simplicidade e delicadeza em seu riff ligeiramente azedo, acompanhado, na base melódica, por um violão de temática aveludada. Assim que Fortuna entra em cena com um surpreendente lirismo espanhol, aquela inicial impressão percussiva se concretiza, conforme os tambores de Santiago Santos vão se destacando e ganhando protagonismo na criação da esfera rítmica. Ganhando um clima densamente latino a partir daí, a canção, curiosamente, passa a transcender os limites decifráveis do que é sensibilidade e delicadeza. De cunho quase transcendental, Hola é onde Duda Fortuna conversa com as ondas do mar sobre a sorte que ambos têm em observar o pôr-do-Sol e o alvorecer do luar, assim como confessa sua confiança no poder do destino. Uma música de espírito leve e, principalmente, humilde em cujo som fragilmente tilintante do teclado lhe confere uma atmosfera interessantemente astral.
Ela nasce com uma sensibilidade doce e tocante, que sem qualquer sinal de esforço, consegue tornar, através da delicada união entre teclado e violão, seu cenário ainda muito prematuro em algo tocante. Assim que o sonar ácido e doce da sanfona, produzido também pelo teclado, entra em cena, é como se, no horizonte bucólico, pudesse ser observado o esplendor do Sol despertando e banhando a vegetação, ainda úmida do sereno, com seus fracos e primeiros raiares de luz. Como um pai acariciando o filho no calmo processo de acordar, Fortuna invade o cenário com uma interpretação de extrema ternura que captura, de imediato, a sensibilidade do ouvinte. Ganhando corpo com a entrada de um baixo gentil em seu viés encorpado, Flor Que Se Abre, assim que a bateria de Marleu Nascimento começa a desenhar o corpo rítmico, conquista sua base baião. De alma já adquirida e trabalhada, a canção, agora, passa a exortar uma receita composta por pitadas de frescor e sensualidade que tornam sua conjuntura sonora convidativamente macia. Transcendendo os limites da delicadeza harmônica com a entrada educada e gentil do adocicar ácido do hammond, capaz de soar tal como o desabrochar de uma flor, a faixa traz um lirismo de aparência romântica no que tange o âmbito do relacionamento. Outro viés dado à sua história é o de que, seu olhar belo e, de fato, romanceado, trazido por um interlocutor na forma de um personagem onipresente e meramente narrativo, está para o processo do amadurecimento e aquisição de sensos de independência e liberdade adquiridos pela personagem em foco.
Sua atmosfera é sonhadora e um tanto entorpecente graças aos sonares agudos e tilintantes inseridos pela programação de Vini Cordeiro, os quais se destacam por entre a maciez da movimentação do violão. Nesse ínterim, é curioso perceber que, somente com o auxílio desses dois elementos, o ouvinte é capaz de mergulhar em um senso amplamente confortável de leveza e despreocupação que chega a beirar até mesmo algo utópico, sonhador e inalcançável. Em Tranquilidade, o ouvinte é levado a uma estrutura diferenciada por promover um dueto interessante entre os timbres complementares de Fortuna e J. Fidelix. Por meio deles, a canção, imbuída em um extasiante minimalismo melódico, assume altos graus de frescor, enquanto fornece um lirismo que promove o senso propriamente de relaxamento no que tange a relação com o tempo. Independente da pressa ou do ócio; da determinação ou do trabalho braçal, o tempo é cíclico e, portanto, não para. Por isso, Tranquilidade é uma obra que, de uma forma certeira, ensina o ouvinte a viver a vida da melhor maneira, mas sem o peso exacerbado da necessidade de fazer tudo estrafegado, simplesmente pelo fato de que o relógio não sessa seu tiquetatear. De outro lado, também, Tranquilidade pode ser entendida como uma obra que, assim como Tocar Outra Vez, traz o destino como foco do lirismo.
O veludo, a sensualidade e o frescor se unem por entre uma melodia delicada que traz, consigo, ligeiras noções de jazz. Através de um baixo suave e um teclado de cunho doce e aveludado trazido por Mathias, a canção, rapidamente, começou a transpirar, de suas silhuetas ainda não totalmente formadas, um aroma floral em meio a uma ambiência romântica. Enquanto a bateria de Martin Freiberg, através de seus golpes leves e espaçados, encontra uma sintonia estética para com a atmosfera rítmico-melódica até então explorada, Fortuna vai fazendo de Fitar outro capítulo de DUAL que, assim como Hola, tem o idioma espanhol como norteador lírico. De interpretação mais intimista e sensual em relação àquela obtida em sua irmã mais velha, a presente faixa traz uma maciez tão estonteante que chega a ser palpável em sua profundidade adocicada. Em Fitar, existe um lirismo estruturado com o auxílio de rimas pobres que auxiliam o ouvinte na absorção de sua história, a qual, da mesma forma como em Outro Carnaval, fala sobre superação das dores do coração. Diferente da primeira, aqui as tentativas ocorrem em meios urbanos, com especiais menções a importantes cidades argentinas, onde esses atos aconteceram. Ao mesmo tempo, no entanto, Fitar pode estar apresentando ao ouvinte um personagem em processo de autoconhecimento vivendo uma superação não do coração, mas de sentimentos íntimos mais profundos, como a depressão. Nesse aspecto, a canção evidencia o quão enganosos são certos sensos de bem-estar, pois eles mascaram as dores mais intensas.
Uma risada cínica e debochada é o elemento que puxa a introdução. Com certo grau de sadismo, ela dá liberdade para que um escopo rítmico-melódico swingado e despojado seja criado através da sintonia entre a bateria de Dado Silveira, o violão e o baixo. Nesse instante é que o enredo lírico começa a ser desenhado através de uma interpretação verbal provocante e com resquícios de deboche. Não à toa que, agora de forma mais clara, o saxofone de King Jim entra em cena como se fosse a sonorização de uma risada de cunho puramente escrachado e zombeteiro. Mesclando o jazz com uma base moderna de MPB, o instrumento passa a ser o fator que insere, além de vivacidade, uma malandragem saliente que contamina toda a conjuntura lírico-rítmico-harmônico-melódica que compreende a canção. Marcada pela sonoridade do violão e tendo as vozes de Fidel e Jim como apoio ao vocalista principal, enquanto amplificam a harmonia lírica, Na Cabeça é onde Fortuna mescla as sensações obtidas após o consumo de um componente alucinógeno. Curiosamente, esse detalhe funciona como uma perfeita metáfora usada pelo vocalista para fazer o ouvinte compreender que é a viagem consciente que vale à pena. Aquela em que se vive, se recorda e se faz emocionar. Uma viagem que, assim como o trem da canção, tem seus vagões, seus capítulos. E nessa viagem chamada vida, apenas o destino sabe a parada final, mas enquanto ela não chega, Na Cabeça ensina a, simplesmente, levar as experiências com leveza e sabedoria.
Fresca, divertida e até, curiosamente, com qualidades sensoriais veranistas, a canção nasce com uma melodia já madura, apesar de sua estrutura swingada soar fraca e distante. Ao mesmo tempo, porém, o ouvinte é capturado por um assobio que faz a função tanto da harmonia quanto de um possível enredo lírico. Na forma de um samba macio agraciado por um baixo bojudo e rebolante na base melódica, a canção é capaz de transcender a significância do que é suavidade. Curiosamente, simultaneamente em que a obra traz uma energia festiva que acaba capturando o ouvinte e o incitando a mexer o corpo ao seu modo, é ela também capaz de pincelar ambiências embriagantemente melancólicas em sua roupagem. Nesse ínterim, Criamos é onde o personagem lírico tenta superar o término de uma relação, enquanto descobre no canto e no sonho, os remédios para as dores de um coração ferido.
É difícil encontrar um álbum em cujo artista não se perca entre o desejo de fazer um material cultuado e o excesso de brilhantismo como estratégia vã para alcançar tal objetivo. Para isso, é preciso, primeiro, humildade para saber que essa é a vontade de muitos e que não é algo que se alcança com rapidez, pois se assim fosse, pode interferir na qualidade. Em segundo, vem a simplicidade. Afinal, quando se sabe trabalhar o simples e extrair dele todo o seu potencial sensitivo, grande parte do caminho rumo a um certo grau de reconhecimento já é percorrido.
Não que o material seja restrito a apenas um ou dois estilos musicais. Não que ele se apoia em apenas um tipo de escopo narrativo. No entanto, DUAL é onde Duda Fortuna consegue trabalhar a humildade do som, a sensibilidade lírica e a simplicidade harmônica a tal ponto em que o material consegue ficar registrado no inconsciente do ouvinte.
Marcado pela sua leveza, frescor e educadas sensualidades, o material de fato chama a atenção pela sua simplicidade estética, ainda que tenham capítulos com extenso time de percussão ou de instrumentos de corda. O fato é que DUAL traz a proficiência musical de Fortuna sem soar um material esnobe ou mesquinho.
Enquanto o ouvinte pode encontrar a arte por meio das fusões de gêneros musicais que cooperam para um engrandecimento da melodia, é ele também capaz de se divertir por entre enredos sádicos e se identificar com as dores do coração vividos por alguns personagens. Além disso, o espectador também consegue, por meio da sonoridade, sentir o calafrio de estar na presença de quem se gosta, se sentir instigado a buscar pelo seu próprio amadurecimento e crescimento espiritual. Outro feito do álbum é fazer o público se permitir relaxar e entender que também é merecedor de momentos de ócio.
Para conseguir penetrar no inconsciente do ouvinte de forma concreta, porém, não bastam apenas boas letras, melodias, harmonias ou ritmos, ainda que, no caso, a mescla do espanhol com o português tenha sido uma estratégia interessante nesse processo. O que precisa é que esses elementos sejam bem trabalhados para que cheguem com a força ideal aos ouvidos do espectador. E é aí que entra o trabalho da mixagem.
Feito a cinco mãos por Emery, Cordeiro, Netto, Granja e Martin Aligieri, DUAL conseguiu expor, de forma transparente e cristalina, toda a sua experimentação melódica. Nela, o ouvinte pode identificar MPB, xote, jazz, reggae e baião de forma a não se mostrarem desconexos entre si, mas, sim, complementares.
Ainda que essas qualidades sejam verdade, parece que, em especial na faixa Criamos, a mixagem parece ter tropeçado na presença do som. Afinal, lá, ele parece não estar nas primeiras camadas de audição, o que acaba fazendo com que o instrumental pareça distante em relação aos outros elementos.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Leo Além, ela traz a imagem de Fortuna em evidência por entre um cenário embebido em tonalidades acinzentadas. Curiosamente, porém, o tratamento em que a imagem do cantor e de seus respectivos equipamentos receberam conferem à arte uma atmosfera psicodélico-transcendental hipnotizante. Ainda assim, a fusão dessas qualidades não comunicam, de forma assertiva, a essência do álbum.
Lançado em 13 de setembro de 2024 de maneira independente, DUAL é um material de atmosfera doce, fresca e singela, mas também ativa e excitante. Um material onde o brilhantismo encontra a humildade e se afasta de um excesso de personalismo. Um trabalho feito sob medida para o ouvinte cantar, dançar, se emocionar, refletir e, principalmente, se lembrar.