NOTA DO CRÍTICO
Depois do lançamento de sucessivos singles desde 2020, o trio capixaba Chorou Bebel enfim decidiu se lançar oficialmente no mercado musical brasileiro. E foi no início do segundo trimestre que ele anunciou P/ Quem Tem Coragem De Amar, seu disco de estúdio de estreia.
Caloroso, animado e instigante. Ensolarada e convidativamente sorridente, o amanhecer é regido pelo sonar de palmas sincopadas unidas a um coro melódico de três vozes. Nesse instante, a guitarra de Bozi, com seu riff afinado e de caráter praiano, é o único instrumento propriamente orgânico. Exalando um aroma regional marcante, a canção leva o ouvinte ao seu primeiro verso a partir dos batuques opacos do repique de Bebici, que funcionam quase como uma recepção para um ambiente de pura confraternização. Com um samba inevitavelmente cativante trazido pelo cavaco, Anzol é uma faixa que mistura o swing do samba com o sorriso do nordeste cujo som ainda tem lapsos de psicodelia a partir de notas curiosamente chorosas e sofridas do mellotron. Repleta de rimas, a faixa conta a história de um personagem que, ao se ver órfão de amor, mergulhou em um estado de solidão profundo que o impediu de manter seu eixo de vida naturalmente linear. A desordem e o descuido são fatores que se mostram evidentes pela falta de um senso de organização lançado no horizonte como tentativa de, além de recuperá-lo, fisgar a razão pela qual o coração bate mais rápido. Anzol é simplesmente uma canção alegre, de traços nordestinos e que se perdem, também, em circuitos dramáticos.
Com um MPB swingado de forte presença do baixo de Simor, o ritmo também é dominado por uma calmaria fresca e aveludada que, trazida pela bateria de Mateus Pimentel, funciona como o cintilar da cortina ao contato com o vento durante o primeiro verso. Com influências singelas de Kell Smith e Gabriela de Paula Pontes Melim, a forma como o timbre grave, seco e com presença de melismas de Rany se movimenta traz também a evidência do R&B na receita melódica. Com direito a rompantes sincrônicos do trombone e do trompete de Oziel Neto durante o refrão, momento em que a paleta de cores ganha toques mais vivos, Me Invade é o romance, é a entrega, é a paixão, é o calor. É a descrição da sensação de perder o sentido e a razão quando na presença da pessoa para quem o coração bate mais forte e as palavras vão embora. É assim que Me Invade funciona até mesmo como um segundo capítulo de Anzol, aquele em que a pessoa amada finalmente chega e preenche o espaço-tempo.
Um sorriso tolo, debochado, infantil e cínico. Quase como se fosse um aviso de que iria aprontar alguma coisa com alguém. Esse caráter cômico cuja melodia tem ligeira semelhança com aquela de The Pink Panther Theme é executado pelo piano durante Vinheta, um interlúdio rápido, minimalista, mas curiosamente divertido.
A voz doce e serena de Rany é acompanhada de chiados propositais que logo comunicam um flerte estilístico com o lo-fi. Com essa textura até então inédita em P/ Quem Tem Coragem De Amar é que a faixa vai propondo, gradativamente, o desestressar e a despreocupação. Nesse ínterim é que o compasso oco da zabumba de Lídia Soares e o soprar ácido-adocicado do acordeon de Chico Chagas entram para completar a vertente melódica de Ciumêra, um produto que, assim como Anzol, tem fortes aromas nordestinos que, aqui, surgem em virtude do xote. De caráter quase teatral, Ciumêra é a narrativa do momento em que a crise bate no relacionamento. Uma série de dúvidas que soam delicadas pairam sobre as cabeças dos indivíduos que montam o par enquanto uma metade percebe estar pressionada para aprofundar o relacionamento em cadências desarmonicamente aceleradas. Eis então que Ciumêra é a proposta de ir devagar e no compasso da dança para sentir a sinergia funcionando.
A acidez do wurlitzer se une ao groove do baixo na função de introduzir o ouvinte a um novo ambiente que, logo, se mostra de saco cheio e impaciente. O suspiro que faz a ponte para o primeiro verso vem carregado de desejo, de pressa e de expectativa. Sensual e novamente trazendo o R&B para a receita melódica, a interpretação lírica de Rany é swingada e evidencia o compasso trotante desenhado pela zabumba de Japa Novela. Com mais nitidez a metais como o trombone, Juro consegue misturar reggae, soft rock e o xote de maneira a soar brasileiro, macio e com uma nova proposta de MPB. Juro é curiosamente o oposto de Ciumêra, afinal, aqui a personagem lírica apresenta uma inegável dependência do outro para ter a plenitude do prazer e do bem-estar.
Sensual, macia e contagiante. A união do swing ameno e provocante da guitarra com o veludo do rhodes cria uma sensação de conforto e desejo de maneira sinérgica. De cadência lírica semelhante àquela adotada por Djavan em seu single Se…, Duarte, com seu timbre grave, reflexivo e pesaroso adota o microfone e dá respaldo aos cantos do trio. Minimalista em instrumentação, Desprevenido é estruturado com o baixo de Maholic, o bumbo e o rhodes em um compasso cabisbaixo e introspectivo que casam com a melancolia do fim e das dúvidas referentes aos porquês desse veredicto. A dor da verdade é inevitável, mas o torpor da dúvida é ainda mais sanguinário por ele manipular os sentimentos e mostrar realidades não comprovadas. E em Desprevenido, o personagem lírico assume sua falta de atenção movida pelo torpor da rotina e, também, do medo de encarar os fatos.
O pau-de-chuva dá, logo de início, uma sensação de frescor. Já ao soar do grave característico do violão de nylon, uma noção intensamente sertaneja é oferecida ao ouvinte, que consegue até mesmo sentir o cheiro do pasto. Na forma de um folk harmônico a partir do uníssono entre as vozes de Rany, André Prando, Bozi e Bebici em, coros cuidadosamente pontuais, Zum Zum Zum se apresenta em sua melodia como um cântico sertanejo do ápice do prazer. É a prefeita descrição do ato sexual de forma metaforizada, mas de fácil interpretação. A evidência de que, entre os personagens, definitivamente existe química.
Ainda mais melancólica que Desprevenido, Pelo Avesso traz violinos que representam aquele choro mudo, o sofrer silencioso para que ninguém perceba o suor da dor emocional que extravasa pelos poros do corpo. Evoluindo para uma entorpecente MPB sambada, a faixa é narrada sob a voz agridoce de Bozi e traz, surpreendentemente, um turning point sensitivo-emocional que traz um personagem divagando pelos seus amores pela pessoa querida e pelo desejo de com ela para sempre ficar. O enfrentamento do medo da incerteza de um sim para a eternidade é apenas um ponto que, mesmo dito apenas entre os dois, basta como promessa para uma vida repleta de reciprocidade.
O barulho da água junto ao educado dedilhar do violão oferecem não apenas frescor, mas calmaria e um estado aconchegante de conforto. Com os rompantes bojudos do baixo, a proteção fecha o trio sensitivo da introdução, que evidencia o vocal mais ameno de Duarte como o detalhe lírico majoritário da canção. Com solo de um ânimo acolhedor vindo do wurlitzer de Tosi, Rouquidão é, sem enganação, a verdadeira transcrição da nostalgia e da tristeza desapontada de um passado sem continuidade. A verdadeira continuidade de Desprevenido. Um poema lamentoso do vislumbre de um amor não mais correspondido.
De voz aberta e forte, mas ainda delicada e floral, Rany faz de Mandiguê, uma canção de compasso 4x4 mudo, que muito soa como uma continuidade indiscutivelmente linear de Rouquidão. A presente canção, se a proposta fosse mostrar que os dois lados sofrem com o término, soa como o ponto de vista do outro perante o desmanche amoroso. O desejo de ser feliz ao lado da pessoa amada é tanto que qualquer ação para alcançá-la é bem-vinda, mas a vida é regida pelo livre arbítrio e, nele, as escolhas falam mais alto e são inabaláveis quando feitas com certeza.
Fugindo da melancolia inebriante e embriagante oferecida em Desprevenido e Mandiguê, a presente canção oferece o remédio da alegria, do agito embrionário e de um sorriso que recicla aquele estado eufórico de Anzol. Com direito a inserção de guitarra elétrica de forma a flertar com a estética do manguebeat, a canção é recheada de texturas percussivas que vêm do batuque opaco do bongô e da opacidade aguda do coquinho. Forrobodó é uma música que une o nordeste com o sudeste, a fusão do rock com o axé e, até por conta disso, da mescla de manguebeat. Como uma verdadeira narrativa linear, Forrobodó encerra P/ Quem Tem Coragem De Amar de maneira literária ao trazer um enredo que, indiscutivelmente, venera o amor, assim como Anzol que, ao seu modo, mostrou a pureza da reciprocidade da relação.
É o amor que meche com minha cabeça e me deixa assim. Esse poderia ser o verso definidor do álbum de estreia do Chorou Bebel, mas é de autoria de Zezé Di Camargo. Ainda assim, o amor, com sua força inexplicável sobre as pessoas, seus poderes extrassensoriais e sua arte de sedução é, de fato, o tema central de P/ Quem Tem Coragem De Amar.
Ainda que o amor traga, por si só, muitas alegrias, ele oferece também dores do coração. Desilusão, desapontamento e decepção são alguns dos efeitos colaterais negativos que vêm do amor e servem de base para canções como Desprevenido, Rouquidão e Mandiguê.
Ainda assim, a tarefa de P/ Quem Tem Coragem De Amar não é trazer o sofrimento ou comunicar que o amor também pode surtir em dependência, como foi narrada em Juro. Ele tem a intenção de valorizar a alegria, a paixão, o estado de êxtase e a ausência de racionalidade pela profundidade de emoções positivas que pode originar. O desejo carnal, apesar de ser apenas a etapa mais superficial, é bastante abordada no trabalho. Títulos como Zum Zum Zum e até mesmo, e em menor grau, Juro, são exemplos disso.
Para mostrar com alegria os poderes do amor, o Chorou Bebel se aliou a nomes como Simor e Bebici para dar uma trilha sonora sincrônica aos contextos narrativos. E pelo fato de os profissionais também fazerem parte da área de composição, o álbum soou inclusive mais bem equalizado e condizente com as energias das faixas. E assim, P/ Quem Tem Coragem De Amar proporcionou a fusão do samba, da MPB, do xote, do R&B, do lo-fi, soft rock, do reggae, do axé, do folk e do sertanejo de maneira orgânica.
Fechando o escopo técnico vem a arte de capa. Assinada por Jéssica Lobo, ela traz a montagem com fotografias individuais dos integrantes em suas fases infantis. Assim, existe a captura da pureza, da simplicidade, do descompromisso e, principalmente, da alegria. E é justamente esse sentimento que rege grande parte do álbum.
Lançado em 28 de abril de 2023 de maneira independente, P/ Quem Tem Coragem De Amar é um material repleto de aromas regionais que se unem em prol da MPB e sua base samba enquanto se perde em devaneios sobre o amor e o que ele traz. Intenso e profundo, esse sentimento demanda cuidado, mas que deve ser aproveitado. Por isso, o álbum é endereçado a todos aqueles que têm coragem de amar.
