NOTA DO CRÍTICO
Ela vem de uma Rio Claro dos idos de 2021 e formada por ex-integrantes de bandas da cena underground paulistana. A Driven By foi conseguir, porém, lançar um primeiro registro somente agora, no final de 2023. Ourselves, seu EP de estreia, é um material vendido como um produto que escancara traumas, feridas e abusos do cotidiano.
O início une lo-fi com pitadas de uma ambiência céltica fabulesca. Enquanto o baixo de Wanderson Brieri se promove de maneira solitária com seu protagonismo preciso e de corpo estridente em meio ao chiado, a paisagem que se forma é rochosa, empoeirada e repleta de brisas que carregam consigo flocos de areia que podem trazer tanto resquícios do passado, quanto recados do futuro. É então que um blues firme, e ao mesmo tempo amaciado, surge a partir do groove da bateria de Alison Carvalho e o veludo soprante da guitarra de Dane Alzilieiro. O timbre suave, com ligeiras pitadas graves, de Marcus Vulgare, completa o escopo rítmico-melódico ao passo que faz lembrar ao ouvinte a voz de Theo van der Loo. De clima introspectivo, Driven é atingido por um repentino trovão que transforma seu torpor em ácido, em sujeira, em aspereza. O metal alternativo entra em voga entre ecos flamejantes e pingos de uma chuva corrosiva. É interessante, nesse ponto, ver como o Driven By consegue fundir a delicadeza swingada e sensual do blues com a força e a precisão do metal alternativo. E isso faz de Driven, uma música angustiante que mistura conceitos de possessão, autoconhecimento e pertencimento, enquanto tenta encontrar um sentido para a vida, uma obra inquietantemente épica que ressalta o domínio que se tem perante o próprio destino.
A guitarra, por meio do sonar da distorção, tem sua imagem transfigurada em um uivo de agonia que, logo, flui para um ambiente metalizado, preciso e densamente melancólico entre os usos de bumbo duplo e riffs estridentes. Em um tom que mistura súplica, desespero e um sofrimento densamente entorpecido, Vulgare não demora em fazer de Clona o desejo insaciável de fuga. Fuga de uma rotina desgastante. Fuga das sensações de fragilidade e insegurança. Fuga da culpa. Clona é uma faixa dilacerante e lancinante que escancara a sensação de falta de pertencimento, enquanto o personagem parece reconhecer uma natureza incandescente e perigosa que aflige os outros e queima sua verdadeira identidade. Por isso, em última instância, Clona é a fuga do protagonista em relação aos seus instintos mais caóticos.
Existe um suspense capaz de cativar e instigar o ouvinte em sentir o nervosismo e a ansiedade de descobrir os próximos passos da linha melódica. Em certo ponto, essa qualidade traz consigo visível influência do Creed, que dela muito se utilizava em suas introduções melódico-narrativas. Trazendo requintes de um melodrama suficientemente capaz de introduzir o metalcore na receita sonora de Ourselves, a guitarra de Anzilieiro vem com o choro, enquanto a base de Hueller Figueiredo vem com o desejo pela racionalidade na tentativa de barrar essa espécie de sofrimento sádico. Lights, Shapes & Death vem na forma de um single contagiante em sua dor, em sua angústia. Uma obra que traz o ouvinte para si e o faz se sensibilizar pelo desespero do personagem em conseguir auxílio para se desvencilhar dos pensamentos ruins e canibalescos. Enquanto ele suplica por ajuda e se apoia na fé em um misto de desejo honesto e manipulativo apenas para se safar do sofrimento, o personagem se encontra à beira da loucura incentivada pelos confins do seu próprio inconsciente. Ainda assim, Lights, Shapes & Death o encontra em um estado de profundo desamparo que o faz jorrar ao vento “you don't wanna save my life”, uma frase solta, mas carregada de dor e decepção perante uma figura que, aparentemente, o deixou relegado ao esquecimento e ao convívio eterno com sua própria insanidade incandescente.
A melancolia ainda é o ingrediente sensitivo dominante no novo horizonte. Cinza, chuvoso e com ondas de uma suavidade tristonha, a paisagem traz, em si, a lágrima, a memória, o punho cerrado e os olhos fechados. Existe, portanto, um torpor generosamente contagiante que, assim como acontece em Driven, é engolido por um estrondo sujo, áspero e, especialmente aqui, com requintes de agressividade. Reintroduzindo os chiados despropositados do lo-fi, Masks é uma canção forte e visceral que funciona quase como uma continuação linear de Lights, Shapes & Death, pois traz um indivíduo absorto em seu estado letárgico de desolamento. Porém, mais ainda que as sensações ardentes de Clona, Masks apresenta o personagem perdido em um estado corrosivo de culpa, mas uma culpa que, rapidamente, é esquecida pela necessidade de provação de autossuficiência e da aceitação dos próprios defeitos em um cenário em que a ausência da fé leva ao esgotamento de forças em prol da mudança.
A estridência ácida da guitarra junto ao baixo continuam dando vazão às lágrimas em um estado já sem controle. O rosto já se encontra enrugado e, os olhos, tão avermelhados que são incapazes de diferenciar as cores do horizonte. É como se a mesma energia de Driven se repetisse de igual forma, com a singela diferença de ser trazer um estado de sofrimento mais cortante em sua mudez introspectiva. I’ve Gone é angustiante e tão melodramática quanto Lights, Shapes & Death, mas possui um lirismo sombrio pela sua densa desesperança na vida. É como ouvir de alguém que o ato de viver, além de não fazer mais sentido, está comprometido pelos comandos dos espíritos malfeitores que manipulam o sofrente a partir da própria fragilidade.
Apesar de ser intenso, preciso e muito bem ministrado, cada um dos sonares presentes não consegue esconder a essência caótica, dilacerante, lancinante, lacrimal e angustiante de Ourselves. O álbum, definitivamente, não vem com o intuito de ser um conto de fadas sobre a vida e sobre as coisas boas que ela pode trazer. Pelo contrário. Ele é a junção de cinco visões melancólicas de como o ato de viver pode ser desgastante e perigoso para a alma.
Não é à toa que o ouvinte, em diversos momentos, se vê cabisbaixo e contagiado por um sofrimento até então ilusório. Trazendo, portanto, as dores e as agonias dos personagens líricos para si, o espectador se percebe em uma sintonia quase inquebrável diante do desolamento e de um curioso senso de solidão.
O esquecimento associado à ausência de pertencimento fazem com que Ourselves não traga nem uma menção de porto seguro para se apoiar e se sentir acalentado para deixar rolar as lágrimas que brotam desesperadamente da fonte de um coração adoecido. Um coração ausente de amor, compaixão e proteção. Um coração que, sozinho, queima qualquer resquício de brilho e sensibilidade.
Para dar peso e densidade a esse volume enegrecido de melancolia, o Driven By se associou a Lucas Neves para deixar o sofrimento mais palpável e tátil. Com Neves, Ourselves exala uma mistura de post-rock pela experimentação de texturas melodramáticas, mas também, por conta exatamente disso, de metalcore. Além deles, o lo-fi e o metal alternativo se fundem com o stoner rock pelo excesso de estridência que é empregado nas canções, como forma de externizar a raiva por algo onipresente.
Finalizando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Wildner Lima, ela vem adornada em uma base exotérica, mas que excessivamente está perdida em um emaranhado de figuras caveirosas que decifram a ausência da vida. Pela figura central, porém, é como se Ourselves fosse como uma terapia, um monólogo de cinco vozes em busca daquilo que lhes faz sorrir e querer estar.
Lançado em 02 de novembro de 2023 de maneira independente, Ourselves é o sofrimento, a agonia, a angústia, o choro, a dor. É a súplica de cinco homens que buscam, entre rompantes conscientes, de incentivos, de motivações. De horizontes que lhes façam enxergar a vida como algo belo que tem, nos desafios, as provas necessárias para adquirir capacidade de trilhar caminhos regidos pela autoconfiança e pela fé de que tudo tem uma razão de ser. Ourselves é um livro musicado de autoconhecimento regido pelo sofrimento.