Cali - Cali

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Não existe mais Charlie Brown Jr.. Não existe mais Tihuana. Desse lado, resta saudade. Curiosamente, porém, integrantes dessas duas bandas se reuniram, junto com outros integrantes, para um novo projeto. Intitulado Cali, ele vem lançando singles desde o final de 2019, mas só agora, em janeiro de 2021, o disco de estreia saiu do papel.


Uma guitarra em tom alegre se presencia com destaque no início de Cidade dos Anjos. De base rítmica cativante, a música apresenta uma letra leve, pra cima, que é trazida pela voz limpa, afinada e inconfundível de Egypcio. Cheia de harmonia, a canção ainda traz um groove sutil, mas que preenche a melodia de tal forma que entrega ainda mais movimento à música. É interessante notar que, nos versos, Leo Rota faz com que sua guitarra se pronuncie mais alto, mas sem perder a pose, a sutileza. Afinal, ela sobrevoa a melodia entregando uma chuva de cores vivas e de leves toques de swing. Como primeiro single divulgado pela banda, Cidade dos Anjos ainda guarda um refrão chiclete que não penetra na mente do ouvinte de forma agressiva, abusiva. Assim como toda a estrutura sonora da faixa, esse trecho vem de forma singela ganhando espaço e contagiando o espectador


Em Sobre Nós – Versão Estendida, a guitarra já surge mais agressiva, mais alta, como se estivesse chamando a atenção do ouvinte para que este, por sua vez, a ouvisse calado. Ganhando mais força nessa empreitada, Léo Rota recebe ao seu lado uma bateria de estrutura bem elaborada, cheia de repiques. É Bruno Graveto se apresentando de forma a explorar todos os elementos do seu instrumento nessa que é uma canção swingada, pop, amplamente comercial e com uma cadência que cativa facilmente o ouvinte. Um pouco mais distante da levada surf rock de Cidade dos Anjos, Sobre Nós – Versão Estendida tem uma dose extra de swing, sensualidade e um instrumental audivelmente mais completo. Afinal, desde a introdução é possível perceber, ao fundo, elementos percussivos que fogem da alçada da bateria propriamente dita. Esse som, que se soma ao groove, é trazido pelo percussionista Fouad Khayat.


Um som mais pesado e mais distorcido é ouvido na introdução de Eu Vou Olhar Pro Céu, uma música que conta com guitarra dupla, fazendo com que enquanto uma desenhe notas de rebeldia calada, a outra se exceda e proteste alto na companhia dos outros instrumentos. Ainda mais groovada que as anteriores, a música apresenta Egypcio com um vocal pontualmente mais rasgado acompanhando a agressividade da guitarra solo, tornando a música um blend de hardcore e hardrock.


Saindo da agressividade, do groove, do surf rock vem uma balada de tom melancólico. É O Tempo se pronunciando inicialmente com um time de cordas singelo. Cheia de frases fortes e de impacto, tais como “É tempo de viver sem medo, medo de uma oração” e “O tempo é uma questão de sim ou não”, a faixa tem um refrão com ampla harmonia e melodia. Nela, todos os elementos se conversam em perfeita sintonia, desde o baixo até a guitarra. As cores apresentadas, portanto, não são intensas, são mais brandas. Mas não só isso. Majoritariamente acústica, O Tempo faz, no refrão, uma homenagem a Chorão com a frase “Dizia o sábio dos loucos: vamos viver nossos sonhos, porque o impossível é só questão de opinião” em uma perfeita paráfrase das expressões usadas frequentemente pelo saudoso vocalista do Charlie Brown Jr.. Não bastando, na segunda estrofe da canção o refrão ganha mais musicalidade e até mesmo um coro infantil em uma direta influencia de Another Brick in the Wall, single do Pink Floyd


Apenas pela guitarra, mais agressiva e pesada, se percebe que Todo Mundo Chora é uma música que promete entregar um groove acentuado. E isso vai se confirmando com a entrada precisa e em completa contagem de tempo do baixo de Lena Papini. Conforme a música vai evoluindo, sua estrutura se mostra com elementos do reggae e do ska numa perfeita atmosfera surf, mas não tanto quanto em Cidade dos Anjos. O interessante na faixa é que, em determinado momento, uma voz feminina passa a acompanhar Egypcio no conteúdo lírico. É Kell Smith com seu vocal preciso, afinado e de canto mais mole acompanhando a malemolência da melodia.


A próxima canção começa atiçando o ouvinte. Com uma injeção de energia, ânimo e até ansiedade e uma completa excitação, The Guitar Song entrega toda a combinação de elementos que Cali até então apresentou: swing, agressividade, malemolência, groove, sedução, harmonia e um peso sonoro ainda maior ocorrido pela entrada de uma terceira guitarra que caminha constantemente em destaque. É Marcão Britto empregando uma linha sonora que definia tão intensamente a assinatura harmônica do Charlie Brown Jr. durante o seu tempo de permanência na banda. Como um instrumental, o single é forte e cheio de presença.


Rota e Khayat dominam a introdução de Honra, uma música que oferece uma baixa na adrenalina com uma melodia mais séria, madura e que entrega até melancolia. Com um vocal de estrutura calcada no rap, Egypcio traz rimas perfeitas e uma letra com mensagens fortes sobre não desistir, fé e autoconhecimento. E para dar mais peso a essa letra, Sérgio Britto entra no refrão trazendo frases de impacto como “Corre! Ainda dá pra ver o céu, olhar e, quem sabe, sonhar. É tão mais bonito do que desistir”. Tais palavras entram na cabeça do ouvinte e ficam em movimento constante trazendo altas doses de reflexão, algo que é até mesmo estimulado pelas notas do piano.


Longa Estrada já recupera a alegria e a energia praiana, viva, das músicas anteriores. Na faixa, o ska e o surf music retomam seus lugares nessa melodia que é cheia de elementos percussivos que, junto com o baixo, imprimem groove à melodia. De refrão leve e chiclete, a musicalidade persiste em alta e ganha temperos diferentes com a entrada de Digão Bessa e seu vocal aberto a partir do segundo verso. No refrão, a guitarra grita, uiva e traz uma amplitude harmônica nessa que é a última faixa de Cali a receber convidados.


É verdade que em todas as canções é possível perceber a influência que Leo Rota tem em relação ao Red Hot Chilli Peppers e, mais especificamente ainda, a John Frusciante. Mas esse detalhe fica evidente na introdução de Sigo na Promessa, uma música que, logo no refrão, Rota emprega técnicas como hammer on e pull off trazendo um movimento diferenciado à canção. Com elementos como harmonia e melodia em alta, a música é um produto de estrutura alegre, cheia de groove, cadencia e uma letra que é reflexiva ao mesmo tempo em que traz reflexão.


Hardcore, pop punk, e, em menor volume, grunge. São esses estilos que compõem a melodia de Estamos em Guerra, uma música de refrão chiclete, peso e agressividade. Sua estrutura recupera o frescor e a sonoridade que pautou os anos 2000, a qual teve como grandes representantes CPM 22, Raimundos, Detonautas e o Charlie Brown Jr.. Por essas razões, somadas ao fato de a canção tem o refrão mais chiclete de todas as músicas até então apresentadas e, dentro desse quesito ainda conseguir imprimir traços líricos de protesto, a música é um perfeito single lado b.


Monkey Boys vem como uma divisória para a faixa de encerramento de Cali. Calcada no beat eletrônico, ela tem apenas Rota comandando a harmonia com sua guitarra já muito característica.


Para fechar o álbum de estreia, Cali escolheu a versão radiofônica de Sobre Nós. Intitulada, portanto, Sobre Nós – Rádio Edit, ela não possui a entrada caracteristicamente calcada na conversa entre guitarra e bateria. Ela começa direto com um uníssono instrumental que caminha logo para o primeiro verso. De resto, a harmonia e a musicalidade continuam a mesma.


O aguardado álbum de estreia da Cali é algo que os roqueiros brasileiros há muito buscavam e, consequentemente, há muito sofriam pela ausência no mercado fonográfico. Como já foi mencionado anteriormente, uma das coisas que Cali entrega é uma reciclagem autentica do frescor do rock nacional dos anos 2000. Mas não apenas isso.


Cali apresenta seus músicos em ótima forma, transmitindo a química formada entre eles a cada música inserida para compor o álbum. Essa ótima forma implica em competência, técnica e um entrosamento que, juntos foram responsáveis com que cada música fosse única em sua estrutura e única em sua melodia.


Outra coisa que é interessante notar é que, assim como Roger Moreira fez com Nós Vamos Invadir Sua Praia, álbum de estreia do Ultraje a Rigor, Egypcio e companhia conseguiram fazer com que Cali fosse um disco formado somente por singles. Isso torna o trabalho de estreia da Cali um produto comercial em toda a sua totalidade, mas sem se esquecer da qualidade harmônica e melódica que possui.


E tudo isso está presente na arte de capa. Feita por Dalton Miranda, ela transmite o frescor, transmite a praia, transmite o groove, o swing e até a agressividade. Tudo isso graças às cores adotadas. Afinal, um degrade que vai do amarelo ao marrom e se completa com um azul preenche a caricatura de uma guitarra que, pelos traços, já comunica algo praiano.


Lançado em 12 de fevereiro de 2021 de forma independente, Cali tem produção conjunta da própria banda com Marcão Britto e André Freitas. Fresco, autêntico, competente e com pressão. Essas palavras definem bem o que é Cali. Pois é, valeu a pena esperar. Ele finalmente chegou. Bem-vindos à Califórnia. Bem-vindos ao mundo Cali.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.