Benjão - Axé

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Dois anos depois de se lançar em carreira solo com o EP É Pandemia Ou Ê Pandemia, o carioca Benjão dá continuidade à sua nova empreitada profissional com o lançamento de seu primeiro disco de estúdio. Intitulado Axé, este é mais um produto repleto de canções inéditas do músico.


Uma fusão curiosa surge através de texturas ácidas e terrosas graças à sonoridade em processo de construção provinda do atabaque e do teclado. É como uma new wave indígena em fecundação. É então que a guitarra em distorção aguda entra trazendo um embrionário misto de baião e axé durante seu caminhar um tanto desajeitado. Quando o beat entra com seu compasso áspero, a canção passa a ganhar um movimento mais swing cativante que, de súbito, mergulha em uma melodia madura que conta com pinceladas da maciez do fender rhodes e da provocante dança entre as guitarras. Eis o momento que uma voz de timbre suave, levemente grave e de adormecida doçura completa o escopo rítmico. É Gustavo Benjão deixando de lado os demais instrumentos para se dedicar à faixa lírica da faixa-título, uma canção que incentiva uma postura imponente e imersa em uma autoconfiança inabalável. 


Batuques executados por várias mãos são ouvidos enquanto um som áspero surge como se estivesse sinalizando um alerta. Quando o teclado de notas entorpecidamente doces aparece em uníssono com tal sonar áspero, a guitarra entra desenhando uma melodia macia calcada na mistura de soft rock com reggae. Ao seu lado, o baixo caminha com um encorpamento sutilmente swingado, fator que é amplificado com o compasso cadenciado do chocalho. É esse o momento em que uma sobreposição vocal formada por interpretações líricas baseadas em falsete e empostação entra em cena formando o enredo verbal de Ave Papai. Como poema cantado que exorta o senso de pertencimento e essência, a faixa possui, ainda, uma base que parece trazer flertes com o samba, o que a confere um aroma tipicamente brasileiro.


Batuques se unem ao escorrer do pau de chuva e o compasso trepidante do baixo na coxia rítmica. De maneira diferente das canções anteriores, aqui Benjão entra com um posicionamento vocal mais presente e embrionariamente dramático enquanto desfila o iniciar do enredo lírico. Acompanhado por um violão que assume a notável função de um amigo confidente, o cantor vai desenrolando, sob uma base sambada, a história penetrante e chocante de um menino que vivenciava a rotina do tráfico, do preconceito racial, da impunidade policial e da família desmembrada. Hiago é a descrição dramática de uma verdade que transborda a essência brasileira, mas que ainda é alvo de constantes cegueiras condicionantes e negações socialmente educadas. Uma música que traz o instrumental como segundo plano e que prende o ouvinte pela curiosidade e pela estrutura lúdica com que Benjão vai contando algo que, em Axé, é ficção, mas fora da música é a realidade de muitos cidadãos. Hiago é, portanto, uma música cuja arte imita a vida.


Saindo do drama visceral de Hiago, a sonoridade que primeiro se apresenta oferece uma animação amaciada e reenergizante. No compasso do samba e do axé, quem entrega um brilho diferenciado é o mellotron e seu sonar de mistura ácida e grave em inserções sutilmente galopantes. Contando a história de Salvador e ao mesmo tempo narrando a origem do Brasil, Ladeira Do Pelourinho discute passado e presente de uma sociedade que vive em constante contato com os diferentes períodos temporais. 


O adocicado e infantilesco som do xilofone entra trazendo uma nascente e ingênua alegria que contagia pela sua imaturidade. Enquanto isso, o mellotron vai imprimindo acidez e uma ambiência de crescente caráter épico. Se inserindo com um vocal mais aberto cujo timbre sai com um sonar que flerta com o agridoce, Benjão vai introduzindo um conteúdo lírico que vai ocupando um espaço narrativo sobre a força que tem os sentimentos. Enquanto isso, Longe Do Cais acaba mergulhando em um ritmo que flerta com o axé e o maracatu de maneira a produzir, curiosamente, uma melodia amena e ao mesmo tempo contagiante. Longe Do Cais acaba se mostrando uma música de contexto enigmático, pois ao mesmo tempo em que parece tratar da força da mente como norteadora das emoções e falar de amadurecimento, ela também promove a impressão de retratar a cultura do descobrimento, do desbravamento e da busca por um senso de pertencimento.


A acidez do mellotrom, o compasso grave do baixo e a forma como a guitarra se movimenta com seu riff de afinação aguda fazem como se o ouvinte sentisse o calor da luz do Sol e a brisa do mar. A sonoridade pode trazer outros elementos, mas a verdade é que, na introdução, ela traz a estética mais pura do axé até então apresentada no disco. E é exatamente o que acontece. De súbito, a melodia passa a ser guiada pelo tilintar do triângulo e por uma base executada pelo bumbo e pelo baixo. O que surpreende o ouvinte de maneira extasiantemente positiva é o que a canção apresenta de conteúdo lírico. Terror Antiopressor é uma canção que fala com a alma, com o coração ao exalar um profundo senso de nacionalismo e, a partir dele, exigir respeito perante a pátria extravasar o conceito de posse em uma descarada alusão à forma como governantes estimulam a visão de que o que vem do Brasil é do mundo. Não à toa que, entre sobreposições vocais e versos simples, Benjão criou, para a faixa, um grande refrão que mistura ordem e protesto. De cunho político e protestante, Terror Antiopressor entra ao lado de Hiago no time de singles de Axé.


O ouvinte parece estar imerso em um jogo de videogame pela melodia introdutória à la chiptune que é construída. Trazendo uma mistura também com a new wave, tal sonoridade, que caminha entre tons agudos, ácidos e graves, vai contagiando pela sua nascente animação. E é assim, com uma ensolarada melodia de base em um axé tipicamente baiano, que Ajaiô tem seu devido despertar.  Lembrando melodias de canções de soteropolitanos como Cláudia Leite, Ivete Sangalo e Chiclete com Banana, a canção é como um mantra de excitante veneração do destino, da vida e do deixar acontecer. Mais do que isso, Ajaiô é uma música de agradecimento e satisfação pela vida.


A paisagem é natural. As águas correm no curso de um riacho em meio a um jardim esverdeado repleto de plantas. A luz do Sol é vista em feixes que se espremem entre as frestas deixadas pelas copas das árvores iluminando o solo e entregando vida ao ambiente. Esse cenário que mistura frescor e vida é o que se projeta através da introdução de Obi Carvão, uma faixa instrumental que mistura intervenções melódicas de cunho lúdico e imagético com um solo de guitarra ácido que rompe a linearidade rítmica.


Uma ode às origens, à essência de um povo. Uma obra que defende a pátria sob um olhar romântico, mas sem a hipnótica cegueira perante as negatividades que nela também estão presentes. A realidade de uma sociedade. Um devaneio sobre pertencimento. Axé é uma obra que, pura e simplesmente, explora todas as camadas de um Brasil colonial de maneira a misturar passado e presente.


É verdade que, nesse ínterim, o disco é repleto de uma beleza escultural e delicada, mas engana-se aquele que pensar que o trabalho é apenas baseado em uma visão romântica do Brasil e sua história. Afinal, todas as ruas, todos os bairros, todas as cidades, todos os estados e todos os países possuem duas faces: aquela de que querem propagandear mundo afora e aquela que deseja esconder a todo o custo.


E em Axé, Benjão dialoga com maturidade, seriedade e crítica sobre esses lados não tão belos de um Brasil de existência quase negada. O tráfico, o preconceito racial, o machismo, a política desordeira e o menosprezo governamental perante o próprio território para o qual serve. Esses são exemplos de temas muito bem abordados principalmente em faixas como Hiago e Terror Antiopressor.


Para dar peso a essa mescla de romance, paixão e protesto cuja intenção é melhorar a visão em relação ao próprio país por parte dos brasileiros, Benjão foi o responsável por, no Estúdio ¼, realizar a mixagem e a produção. Isso fez com que Axé adquirisse um perfil lírico-melódico leve e divertido, mas também analítico e reflexivo a partir de roupagens que vão do próprio axé e passam pelo baião, new wave, reggae, soft rock, samba, chiptune e até mesmo o maracatu.


Fechando o escopo do álbum, vem a arte de capa. Feita pelo próprio cantor e multi-instrumentista, ela consiste em uma obra moldada a partir de um mosaico em que a figura principal é o turístico e soteropolitano Elevador Lacerda. Contudo, em tal imagem o ouvinte se depara também com o desenho do Cristo Redentor, dos arcos da Lapa e recortes de favelas tendo o busto de Benjão posicionado no canto inferior direito. É assim que ele mostra a história do país: em primeiro plano, a cidade que originou o país. Nos recortes, aquela que foi a primeira capital oficial brasileira.


Lançado em 28 de maio de 2022 via Pomar, Axé é paixão, é nacionalismo, é pátrio. De melodias tradicionalmente brasileiras, mas abertas a influências externas, o álbum é um produto que fala do Brasil para brasileiros. É a história de um país musicada com delicadeza, seriedade e maturidade.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.