NOTA DO CRÍTICO
Três anos após o experimental Walk The Sky, o Alter Bridge retoma as atividades em estúdio para lançar seu primeiro material de inéditas depois da pandemia. Intitulado Pawns & Kings, o trabalho é o sétimo álbum de estúdio do quarteto floridense e marca, inclusive, o seu retorno aos palcos.
Um caos brutal e dissonante, como a trilha sonora das sombras, começa a ecoar o ambiente como uma espécie de chamado, de aviso. Enquanto Myles Kennedy, com sua voz aguda e cintilante flutua pela atmosfera, uma aura fantasmagórica amadurece. Nitidamente sombria, desconfortável e arrepiante, a melodia se vende por um punch uníssono e cavalgante que é comandado pela bateria firme e precisa de Scott Phillips. Tendo na guitarra solo de Mark Tremonti, com suas notas agudas pinceladas na superfície melódica, assumindo o papel de elemento regido por intenso cinismo e provocação, a faixa escorrega para um primeiro verso angustiante em que Kennedy se aventura em falsetes no final da pronúncia de determinadas palavras. Tal artifício, inclusive, faz com que a música já adquira características chicletes na memória do ouvinte. De refrão explosivo, mas levemente melancólico, This Is War leva o ouvinte a caminhar por um enredo sobre corrupção. Uma atividade desdenhada pelos tolos na tentativa de corromper os sábios a desmoronar a própria essência, se desprover das crenças e se tornar uma espécie de indigente do conhecimento, uma pessoa ausente de pertencimento e, principalmente, de autoconfiança e amor-próprio. Por isso, This Is War assume um caráter motivacional quando pronuncia os versos “fight from inside and believe in something” e “don't compromise who you are”, os quais acabam soando até mesmo como palavras de ordem, um incentivo inegável.
O punch entre os instrumentos de corda e a bateria consegue misturar distorção e azedume em uma poeira enegrecida que já sugere a chegada de um material denso, ao menos no que tange a questão sonora. Contrabalanceando ingredientes do puro metal com o death metal, a introdução é banhada por repentes melódicos que funcionam como a sonorização de frestas de luz rompendo a grossa camada rochosa que molda o ambiente. Flertando com a estética de Coming Home e I Know It Hurts, singles do próprio grupo, a canção se mostra ríspida e suja em seu caminhar rastejante como se representasse um personagem cansado de tanto se esforçar para sair do limbo. De teor macabro e assombroso, Dead Among The Living descreve um personagem que vive sem brilho, tesão ou motivação. Um alguém perdido em sua própria ilusão de automenospreso. Tendo um roteiro lírico bem definido em meio à quase dissonante base melódica, Dead Among The Living tem como mote devolver o senso de propósito ao interlocutor e, consequentemente, ascender a chama da autoestima no ouvinte.
Uma guitarra azeda e acelerada traz flertes com o death metal em um alvorecer avermelhado e de progressivo caos que eclode como chama fumegantes, insanas e sínicas. Potente pela sincronia das guitarras e pela pressão extra empregada pela bateria principalmente por conta do uso de pedal duplo, é interessante perceber que, mesmo sem uma palavra, a sonoridade consegue transmitir angústia, desespero e um senso gritante de impunidade. Sombria e densa, Silver Tongue é adornada por um refrão contagiante em sua melodia mista de hard rock e metal alternativo enquanto dialoga sobre uma sociedade perdida em seu senso desenfreado de egoísmo, cobiça e invencibilidade. É como a descrição do juízo final, um momento solene em que todos os atos realizados são julgados por forças superiores. E em Silver Tongue, uma música que, reciclando a fórmula de The Uninvited, single do próprio grupo, apresenta personagens que, representando a comunidade global, não estão em condições de se vangloriar. Mais do que isso. Silver Tongue é uma faixa que evidencia, critica e reflete a prática da manipulação sob a ótica do seduzido.
Repicares ocos dos tons dão um ar hipnótico e de expectativa cinicamente sombria à melodia introdutória de primeiros respiros minimalistas. Eis então que o baixo de Brian Marshall, encorpado, funciona como uma bojuda ligação entre os elementos rítmicos, os quais se somam a duas guitarras de sonorizam riffs uníssonos moles, embriagantes e cambaleantes como se já estivessem em estado de hipnose por conta do groove da bateria. De repente, aquela mesma bateria tímida assume força e presença a partir de uma frase repicada áspera que dá entrada para um instrumental de textura ríspida, base bruta, explosiva e cheia de virtuosismo. Misturando elementos do doom metal, do hard rock e do metal alternativo, Sin After Sin é regida por um primeiro verso cujo ar de suspense em sua narrativa didaticamente penetrante. É aqui que Kennedy se insere de maneira intimista em seu tom levemente anasalado e reflexivo que acompanha a melodia em suas transições explosivamente metalizadas e seus escorregões de volta à concisão sonora. É assim que Sin After Sin convida o ouvinte a se emaranhar por um conteúdo lírico de diversas interpretações. De primeiro momento, ele soa como uma metáfora ao comportamento sorrateiro, mas destrutivo, da Covid-19. De outro, ele parece discutir o autoritarismo, a brutalidade e o extremismo político. Contudo, a reflexão da canção se pauta no comportamento interesseiro de maneira a flertar até mesmo com os pensares sobre a manipulação exposta em Silver Tongue, mas aqui sob a ótica da mentira como ato de esconder a própria essência.
A chuva está cessando. As nuvens densas e escuras estão dando lugar a rajadas de luz que passam a iluminar o gramado encharcado. Devolvendo brilho para o entorpecido e deprimente ambiente antes dominado pela chuva, o cenário passa a ter ar de calmaria e um reconfortante senso de pacificação. Tudo graças à forma como a guitarra, em distorção melódica e comovente, se movimenta como uma valsa angelical recobrando o olhar de esperança naquelas pessoas que, antes, se confundiam entre o senso hipnótico de exclusão social. Chegando a arrepiar pela sua maciez sonora, Stay se mostra como uma balada poderosa de Pawns & Kings, um material que, com muita sensibilidade, estimula o ouvinte a se despir de tudo aquilo que consome a pureza de sua essência. Dor, medo, ódio, tristeza. Quando houver o perdão unido ao senso de gratidão haverá a superação e a paz de espírito. Stay é simplesmente uma ode ao bem-estar e à confiança de que, no final, tudo acaba bem. Apesar de ter um desenho melódico sob medida para o timbre aveludado de Kennedy, a proposta do Alter Bridge em Stay é causar um contraponto entre doçura e azedume. Defendendo esse preceito, quem guia o escopo lírico é Tremonti, integrante que, enfim, acessa seu lado sensível e emocional, algo muito distante de seus hinos já consagrados Waters Rising e Forever Falling.
Soando como uma sirene, as guitarras se dividem entre o grave e o agudo propositadamente caótico. Convidados a explodir em uma nova divisão rítmica pela bateria de golpes cadenciados e de velocidade crescente, os instrumentos acabam construindo uma melodia que flerta, inclusive, com a estrutura rítmica de The Devil’s Bleeding Crown, single do Volbeat. Agraciada por sobreposições vocais localizadas quase na coxia melódica, a introdução tem um quê interessante de insaciedade misturado com empoderamento. Ritmicamente contagiante em seus punchs graves e de estrutura dominada pelos repiques da bateria, Holiday tem uma aura indescritivelmente excitante e enérgica. Curiosamente alegre e atraente, a canção dialoga, de alguma forma, sobre os pecados capitais. Trazendo um personagem hipnotizado pelos caprichos do homem, como luxúria, ganância e consumismo, ela expõe a agoniante necessidade do equilíbrio emocional, aqui metaforizado pela paz de espírito, em meio à corrupção do indivíduo pelos enganosamente ditos sábios. Nesse quesito, portanto, Holiday sugere ser uma espécie de continuação tanto de This Is War quanto de Silver Tongue.
Não apenas o aroma, mas também a ambiência tem detalhes célticos. Com um suspense incômodo e um tom levemente melancólico-reflexivo, a canção que se inicia é calcada em uma estrutura introspectiva. Tendo nas guitarras a função da regimentação de uma espécie de trilha sonora que amplifica ainda mais o teor literário e penetrante do enredo lírico, a faixa é preenchida por sobreposições vocais que ampliam a harmonia ao mesmo tempo em que amplificam a percepção de a faixa conta a história de um personagem de forma tipicamente fabulesca. Não à toa, Fable Of The Silent Sun traz uma figura lírica imersa na realidade da própria ressurreição. O perdão, a superação do passado, a própria mudança. A vida é vista sob outras lentes, mas nem por isso, a vida deixa de ser merecedora de luta pela manutenção de sua beleza. O tal filho silencioso é a metáfora para aquilo que existe dentro de cada indivíduo que o faz se manter na linha do viver. Fable Of The Silent Sun é uma faixa épica e cuja extensa duração não se faz perceber que ela consiste na mais longa do álbum.
Curioso ou não, a sonoridade que as guitarras constroem cria grande parentesco com a estética melódico-rítmica das canções do Foo Fighters. Inserindo pitadas alternativas, o novo ambiente passa a prometer ser uma espécie de segunda balada ao lado de Stay, mas com níveis de comoção bem menores. Ainda assim, seu principal ponto alto é a questão do contágio nos versos de ar, algo obtido graças à forma como Kennedy se coloca. De refrão melodramático, Season Of Promise dialoga sobre legado e, principalmente, sobre herança. Parece algo simples, mas tais questões, na faixa, levam o ouvinte a refletir sobre seus próprios atos e questionar se eles honram os ensinamentos deixados pelos seus próprios antepassados. É aí que pode haver remorso, tristeza e decepção ou alegria e satisfação consigo mesmo. De fato, assim como Stay, Season Of Promise consegue emocionar principalmente pelo seu lirismo. Outro capítulo tocante de Pawns & Kings.
Misturando a essência melódica de suspense de Breathe, seu próprio single, o Alter Bridge curiosamente traz um aroma sonoro que remonta a estética rítmica do Creed em Last Man Standing. Assim como em Fable Of The Silent Sun, a canção tem um toque de suspense céltico fabulesco em sua melodia intrigantemente sinistra. De cadência repicada, a canção tem um movimento cativante ao mesmo tempo em que tem uma evolução lírica que sugere o caos. Com refrão penetrante preenchido por uma guitarra de riffs típicos de Tremonti, Last Man Standing é uma canção que questiona a resistência e a fraqueza relacionada à manipulação e ao vício, não por acaso que os versos mais marcantes são “when you're the last man standing” e “but the first to sell your soul”. Flertando com a mesma estrutura melódica de Where Fishes Go, single do Live, Last Man Standing também traz consigo a lei de ação e reação.
Uma suavidade embriagante vem com a brisa do vento graças à sutileza com que a guitarra e a voz de Kennedy se movimentam sinergicamente. De súbito, o ouvinte é surpreendido com explosões potentes, metalizadas e trovejantes vindas da sincronia quase brutal entre a bateria de Scott Phillips e a guitarra de Tremonti. Eis que a ponte entre introdução e primeiro verso se pronuncia sob uma melodia sinistra e quase fantasmagórica que flui para um ritmo compassado, contagiante e calcado no metal alternativo. Com uma guitarra solo sobrevoando a rispidez sonora com lapsos agudos e embrionariamente melódicos que funcionam como a esperança sobressaindo sobre o caos. Não à toa que a faixa-título apresenta um dos lirismos mais estimulantes, incentivadores e motivacionais da carreira do Alter Bridge. Em um contexto pós-pandemia, a faixa-título funciona como um alento ao excitar o ouvinte a mostrar autoconfiança, coragem, foco e determinação no alcance dos objetivos e, principalmente, uma sede desmedida pela vida construída por uma postura imponente e destemida. Ainda que o refrão seja de teor melancólico, existe nele uma espécie de chamado para a vida e para a perseverança que impregnam no mais profundo cerne do indivíduo.
Não há experimentalismos como em Walk The Sky. Em Pawns & Kings há, sim, a maturação e a construção de uma elevada consistência ao metal alternativo que fez o nome do Alter Bridge. E aqui, no novo álbum, essa maturação é acompanhada de um enredo lírico surpreendentemente motivacional e comovente.
Misturando drama, aspereza e melodia, o sétimo capítulo do grupo tem um viés reflexivo-social latente. O curioso, nesse ponto, é que em diversos momentos os vieses líricos remontam as lentes religiosas dos enredos das faixas do Creed. Semelhanças à parte, o novo álbum do quarteto exala uma intensa sensibilidade.
E por falar em sensibilidade, Pawns & Kings surpreende ao trazer Mark Tremonti acessando seu lado emotivo e desmistificando sua própria imagem de bad boy regimentada por seus riffs majoritariamente brutos e ásperos. Provável ou não, as explicações para tal evento podem ser a experimentação da paternidade de um bebê especial e a imersão no campo da música clássica de Frank Sinatra.
É fato que Stay abrilhantou o disco com sua melodia comovente, mas é preciso dizer que todo o álbum foi construído linearmente com enredos líricos que se conversam do começo ao fim. E o principal legado de suas 10 discussões foi a discussão sobre a vida e sobre as atitudes do homem.
Novamente respaldado pelo chamado quinto elemento, o produtor e engenheiro de mixagem Michael “Elvis” Baskette, o Alter Bridge conseguiu construir um álbum comovente, excitante, enérgico, bruto e reflexivo na mesma medida. E nisso, é possível notar a mistura do metal alternativo, do hard rock, death metal e do rock alternativo na receita rítmica de suas canções. Tudo conectado perfeitamente com as mensagens líricas e reforçando a consistência sonora do grupo.
Fechando o escopo técnico de Pawns & Kings vem a arte de capa. Assinada por Dan Tremonti, ela traz um peão caveiresco em um pódio enroscado por uma cobra. Só aí, o artista conseguiu sintetizar toda a discussão de manipulação e falsidade que permeia o álbum. Além disso, ao fundo existe uma ponte, o que sugere uma espécie de fim de ciclo e o começo de um novo horizonte, uma vez que ela remonta a arte de One Day Remains, disco de estreia do grupo. Como uma ponte liga diferentes lados, é como um questionamento ao próprio ouvinte: que lado será escolhido?, parece perguntar.
Lançado em 14 de outubro de 2022 via Napalm Records, Pawns & Kings é sobre ter o controle do próprio destino. Sobre a sede do ser humano por poder e a relação entre dominado e dominador. É um trabalho sensível e comovente que coloca o legado e a herança no mesmo páreo do presente regido pelas ações humanas regidas pelo interesse, pela falsidade e pelo egoísmo.