NOTA DO CRÍTICO
O ano de 2019 está sendo realmente um período de ousadia para o mercado fonográfico nacional. Diversos grupos estão se desenvolvendo enquanto outros estão surgindo sob selos ainda pequenos para tentar um espaço no mercado. Uma dessas novidades é a dupla folk capixaba A Transe, que teve sua estreia no cenário fonográfico nacional decretada em 18 de outubro de 2019 com o lançamento de Hora Dourada, seu disco de estreia.
Uma voz grave, mas suave é ouvida ao fundo com uma crescente presença. Entoando a frase “O som e a cor” essa mesma voz vai ganhando sobreposições e a união de um vocal feminino, criando um eco extasiante. Este é apenas o começo de Greta, a faixa de abertura. Com boa desenvoltura rítmica, a canção apresenta linhas bem trabalhadas no baixo de Manel Fogo que, juntamente com os grooves de Henrique Paoli, cria um blend estilístico que transita entre o samba, o funk e o blues. Há na canção, também, divisões bem estruturadas que dão, individualmente, protagonismo tanto para o tom grave de Fernando Zorzal quanto ao timbre agudo de Francesca Pera. Tudo isso faz com que a música seja completa em seu ritmo e indefinida em questão de gênero. Esse mistério a deixa inebriante ante o seu balanço e sua malandragem sonora.
De início tropicalista, Papo de Lele apresenta uma levada mais animada ante a música anterior e sua guitarra, afinada em tons mais agudos, dá a sensação de música praiana e remete, mesmo que levemente, ao repertório de Nando Reis. É verdade também que a presença do teclado de Thaysa Pizzolato faz com que a canção seja abraçada por uma experiência extra-sensorial e até mesmo psicodélica. Apesar de tudo, ao se ouvir atentamente à canção, se percebe que sua maior influência estética pode estar atrelada às composições de Zélia Duncan, afinal, existe um flerte rítmico com o reggae. O protagonismo avassalador do vocal feminino é outro fator que reforça esse detalhe. Ainda assim, Papo de Lele traz uma letra que estimula o descarrego de toda a energia negativa para uma posterior sensação de leveza, uma leveza que, desde a melodia às frases cantadas fazem da música um produto gostoso de se ouvir em qualquer momento.
Com uma pitada de synth-pop está Floresceu, uma música que traz o convidado GAVI no microfone e parece ter sido criada no compasso de tempos diferentes. Enquanto o vocal de Francesca traz a leveza de uma MPB, o ritmo, agitado, cria uma dissonância rítmica que, curiosamente, não incomoda aos ouvidos. É no refrão, porém, que tudo se encaixa. Ambos os setores da canção se encontram no mesmo compasso, dando ao ouvinte a possibilidade de degustar melhor do prato audível que lhe está sendo servido. A presença de trechos cantados que entoam “Hmmmm” dá um caráter comercial à canção e coopera para que esse teste do paladar seja mais prazeroso.
Na faixa-título, o vocal de Zorzal em união ao teclado cria uma atmosfera transcendental que tange o folclórico com sua narrativa de citações animalescas para dar uma alusão à liberdade. Na colocação de segunda menor faixa do disco, Hora Dourada pode dar ao ouvinte inúmeras interpretações, da mais escabrosa à mais romântica. O caminho da opinião é livre.
Com uma pegada totalmente diferente das canções anteriores, Me Erre parece ser a primeira de todo o disco a apresentar um caráter mais folk, vista a adoção maciça de instrumentos acústicos como bateria, violão e baixo. No entanto, essa impressão se mantém somente até o fim da introdução, quando o teclado se une ao groove rápido e seco. Contudo, a canção aparenta ser aquela com maior apelo comercial do disco, afinal, mesmo que os vocais de Zorzal e Francesca traga um pouco de melancolia ao estilo Kid Abelha, o ouvinte é convidado a balançar a cabeça em sintonia com o ritmo e a bater palmas tal qual é sugerido sampler de Edu Szajnbrum. No mais, é uma típica música que narra a busca por um amor saudável.
Dançar já apresenta um samba mais acelerado, um groove simples e um violão de notas rápidas e curtas. Porém, a inclusão de outros elementos percussivos trazida por Szajnbrum dão um gingado mais sedutor à canção, a qual pretende, com seu teor lírico, espantar os medos.
Você Me Ensina é aquela canção que relata a transição do crescimento de uma pessoa, desde os primeiros instantes de vida no colo da mãe até seu desprendimento. Com narração de fácil interpretação, apesar de emaranhada em metáforas alegres, a música é sonoramente minimalista e calorosa. Uma boa forma de se encerrar um disco de estreia.
É certo que Hora Dourada pode ser considerada uma aula de musicalidade, uma vez que transita por diversos estilos e, a partir disso, faz com que o ouvinte revisite diversos nomes da música brasileira. Contudo, ainda que a dupla Fernando Zorzal e Francesca Pera tenham provado saber compor boas músicas, parece que ela se perdeu no momento de definir o estilo que Transe defende.
Ao dizer que a dupla é uma representante do folk, a dupla parece ter se esquecido que este gênero é, acima de tudo, um ritmo tradicional e que, portanto, é calcado em elementos acústicos e não-comuns à estética sonora empregada em composições do ambiente mainstream. Apenas com a inserção de bateria eletrônica e teclados, a sonoridade de A Transe como um todo ficou a quilômetros de distância da definição pura do folk, um estilo estadunidense que retrata as mudanças socioeconômicas em suas letras e defende a comunidade local.
Fora essa confusão, a dupla recrutou um time de músicos de peso para dar vida à melodia das composições. Outros nomes importantes, além dos já citados anteriormente, são Yasmin Nariyoshi, Natália Arrivabene, Jackson Pinheiro e Karola Balves. Completa a equipe de instrumentistas a musicista Gabriela Deptulski, uma figura conhecida do novo cenário musical nacional, tendo participado da elaboração de Hemisférios, o segundo trabalho do grupo Antiprisma.
Essa contratação de músicos fez com que Hora Dourada crescesse em qualidade sonora, uma vez que, como foi levantado anteriormente, cada composição tem elementos que proporcionam a criação de ritmos completamente diferentes entre si. Isso torna cada música única em sua expressividade.
Com tudo isso, ficou claro que o selo Funky Pirata Records fez bem em apoiar a Transe e patrocinar as gravações de Hora Dourada. Contudo, se a dupla quiser crescer em conceito e adquirir a concordância entre o ritmo que emprega em suas canções e o ritmo que defende, seria interessante que as músicas de um próximo trabalho sejam compostas inteiramente na levada folk, com minimalismo e a simplicidade estética.
A tarefa é simples: Ao invés de criar canções grandiosas com elementos sonoros digitais como foi feito em Hora Dourada, A Transe deve repetir o teor de qualidade assumido no disco de estreia em composições em que, mesmo tendo poucos instrumentos, o potencial rítmico seja sugado ao extremo. Afinal, parafraseando o chef de cozinha Henrique Fogaça, menos é mais!
*Crítica originalmente publicada no Allmanaque.