Treva - Em Própria Razão

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Ela se formou em 2021. E seu primeiro material, portanto, foi composto por completo durante um período mundialmente tempestuoso. O quarteto Treva imprimiu em Em Própria Razão, álbum gravado no Estúdio El Rocha entre a primavera de 2022 e o inverno de 2023, a representatividade da angústia e a ausência de tranquilidade dos anos pandêmicos.


O coro ouvido de maneira crescente, com sua mistura de cântico candomblezeiro e indiano, embala o ouvinte em uma espécie de mantra de esperança. Como se estivesse escondida e pronta para dar um bote sorrateiro, a guitarra de Felipe Ribeiro surge com uma controlada aspereza até que a bateria de Pedro Hernandes oferece uma frase crescente, como um prelúdio de explosão. Porém, o que acontece depois do incitar da combustão é a maturação de uma melodia macia sob a base de um blues rock que muito lembra aquele feito pelo ZZ Top. O tempero-chave fica por conta da guitarra solo de Chris Wiesen, que entre frases sonolentas e preguiçosas, desperta entre gritos ensolarados e enérgicos que imprimem o hard rock na receita melódica de XXVII, um interlúdio sensual de verve exotérica graças tanto aos backings de Julie Xavier e Maiane Souza, quanto à cama de adocicada acidez proporcionada pelo teclado de Gabriel Mendezz


É a voz da revolta, da incredulidade. Do senso de perseguição não justificável. O homem que lança um desabafo em forma de monólogo exorta seu descontentamento em relação à impunidade policial. Eis que, desse tom de descarrego quase sem fôlego de tanta reivindicação, as guitarras e a bateria criam uma temática que mistura blues, hardcore e raspas bem tímidas de rockabilly. Sob uma interpretação entorpecida, a rouquidão serena de Ribeiro dá início ao verdadeiro diálogo de Novo Amanhã a partir de uma base de um amaciado e melancólico hardcore. Se mantendo nessa mesma energia sedativa, a faixa é um poema que representa o caos de uma mente perdida, sem rumo e sem apoio. Entre a solidão e o desamparo, o personagem, mesmo blindado por sua própria cegueira doentia, Novo Amanhã transpira a esperança de um novo dia, um horizonte melhor e positivo.


Tal como um choro ácido, o sonar da guitarra recria a mesma energia proporcionada por Deryck Whibley no despertar de Pieces, single do Sum 41. Se transformando em uma chuva torrencial de base intensamente melancólica, jorrando e alagando o ouvinte com seu tom de tristeza entorpecida, Onde Morre O Sol, com sua estética amplamente semelhante àquela adotada na majoritária parte das canções de Roque Marciano, álbum do Detonautas Roque Clube, mantém uma base macia, mas de lágrimas cortantes, ao mesmo tempo em que soa comercial. Estruturada a partir de uma cadência 4x4, Onde Morre O Sol é a desesperança. É a sensação de esquecimento, anulação. É a dolorosa relação com um passado infeliz que mata qualquer lampejo de perseverança. Na faixa, inclusive, o Sol é trazido como alicerce de força e persistência. Mas mesmo ele, com sua soberania, não conseguiu superar o inevitável. E por essa razão, a orfandade de estímulo fez com que personagem lírico se afundasse na conformação do imutável.


Enquanto o céu anterior era de um tristeza quase hipnótica com seu tom cinza monocromático, o oposto acontece no novo horizonte. Límpido, de um azul intenso, fresco e com notas praianas, ele traz uma melodia alegre e de maciez contagiante. De base melancólica, mas não dramaticamente lancinante como as anteriores, Quando A Fé Morrer (Onde For) comunica influências presente, mas não tão nítidas, de CPM 22 e Detonautas Roque Clube em sua estética melódica. Tão comercial quanto Onde Morre O Sol, a presente faixa é mais um exemplo de desolamento e desesperança. Um ser humano necessitado de racionalidade e estrutura para se manter no fluxo do tempo. Quando A Fé Morrer (Onde For) é a perfeita antítese entre melodia e letra. A prova de que elas podem trazer energias diferentes, criando um cenário ambíguo proposital.


Chiados de um lo-fi proposital imprimem crueza como prelúdio de uma acidez nostálgica oferecida pela guitarra base. Na forma de uma interessante mistura entre hardcore e indie rock, Memórias & Reclusão se apresenta como uma faixa curiosamente mórbida que, com um backing vocal de caráter quase fantasmagórico, é como a convivência com a lembrança de tempos de caos como forma de não repetir o mesmo erro. Também como maneira de se conformar com uma realidade passada, Memórias & Reclusão condena a negação de um evento, mesmo que tenha sido vergonhoso e devastador. É o trauma, a dor, o medo. É a consequência do caos do ontem no alvorecer do amanhã.


O frescor e o nostálgico são ingredientes que transbordam pela sintonia entre bateria e guitarra solo. Com uma paisagem tão suave quanto o entardecer de verão, a canção apresenta um Ribeiro de vocal tão sensual quanto os assumidos por Paulo Ricardo nas composições do RPM. Despropositada ou não, essa sensualidade ajuda a esconder a agonia e o desespero pelo fim do caos. Como uma continuação direta de Memórias & Reclusão, O Passado Que Se Tem é um recorte de um mesmo evento pandêmico e suas consequências na vida das pessoas. Com versos de melodia semelhante àquela de Flores, single do Titãs, O Passado Que Se Tem se encerra com uma esperança tão tocante quanto o vislumbre da luz do Sol rompendo a escuridão noturna nas silhuetas montanhosas em uma paisagem crepuscular.


É alegremente contagiante como as canções do Ultraje A Rigor. Sensual em seus gritos rebolantes sob uma base hard rock galopante, a guitarra solo é o elemento que tornou a introdução atraente e interessante às massas. Ainda assim, a canção flui para um macio hardcore cujo refrão se apoia em uma melodia semelhante àquela do ápice de Meu Primeiro All Star, single do Cueio Limão. Com essas especificações, Por Chance… Por Sangue! se mostra mais uma faixa contagiante de Em Própria Razão e onde o Treva dialoga sobre decepção. Em alguns momentos, é até possível pensar tratar de relacionamento, mas suas entrelinhas carregam algo mais ácido e até mesmo agressivo. Por Chance… Por Sangue! é, simplesmente, a visão de um propósito vazio. Uma faixa que, assim como Quando A Fé Morrer (Onde For), consegue ser comercial em sua antítese entre melodia e letra. Por Chance… Por Sangue!, por fim, ainda guarda o trunfo de ser a primeira canção do álbum a entregar um considerável protagonismo ao baixo de Eduardo Moratori até então despercebido. O instrumento, com seu encorpado groove de leve estridência, é o verdadeiro chamariz da ponte.


Fresca, macia e entorpecente, a canção se apresenta com um curioso aroma gélido e floral. Com auxílio do piano no compasso rítmico, a canção quase é abraçada pelo boogie-woogie, mas fica apenas com a base adocicada de um blues melancólico. Tendo nos backing vocals femininos outro fator que aumenta sua delicadeza estética, Flama vai garantindo, aos poucos, seu posto de balada de Em Própria Razão. Transmitindo a sensação de se comunicar com a lembrança de entes já falecidos, a canção garante uma tocante nostalgia ao seu enredo que se inicia oficialmente com uma contagiante levada em 4x4. Como outra canção introduzindo o indie rock à receita sonora, Flama mistura pandemia com o cenário político criado pela bancada bolsonarista. A relação direta entre o ódio, a intolerância e a impunidade com o falso senso religioso Flama é a enlouquecedora sequela de quem viu a paz se transfigurar em um caos que se descobriu há muito estar adormecido.


Depois do sonar das trocas de estação de rádio, a guitarra se apresenta em um riff ácido e de inclinação ao sombrio. De explosão contida, melódica e dramática, a canção é embebida em um contagiante torpor encorpado pela mescla de sutileza e leve aspereza do backing vocal estruturado entre Julie e Rodrigo Lima. Apesar dos versos-chicletes, Renasce Em Dor é a canção mais dramática e até mesmo mórbida de todo Em Própria Razão. Afinal, além do lamento e da lancinante melancolia, ela propõe o dialogar sobre o luto, sobre a culpa. Sobre o perdão.


Como um looping narrativo, o álbum apresenta Alento, a faixa de encerramento que soa linear com XXVII. Com sua ambiência de cântico candomblezeiro em seu início, ela escorrega para um blues macio em cujas guitarras representam, em suas extensões, os gritos de um alívio tão sonhado por um personagem em intenso convívio com a dor, com a culpa, com a saudade e com a desesperança. Com um fade-out retomando o cântico, Alento é a reenergização de um indivíduo cansado e fraco de tanto sofrer.


Não existe amor em SP. A frase foi cunhada por Crioulo na canção igualmente nomeada. O que Em Própria Razão discute é se ainda existe amor no mundo, no interior de cada um após passar por sofrimento. Não um amor entre casais ou algo propriamente afetivo, mas um amor travestido em respeito, em força, em perseverança, em esperança.


Passar pelo caos, pela dor e pelo sofrimento e ainda conseguir se manter consciente, no domínio completo das faculdades mentais e da razão são situações admiráveis por serem raras de se observar. No álbum em questão, é estudado a forma como a desarmonia afetou profundamente um indivíduo.


Frágil por dentro e dilacerado externamente, o personagem de Em Própria Razão está longe de estar no controle da própria mente. Ele está, sim, sob o efeito da loucura causada pela dor, pelo sofrimento, pela decepção, pela desesperança, pelo desolamento e pela solidão.


Seu coração pulsa aos gritos de súplica pela retomada de normalidade. Seus olhos transbordam em lágrimas ácidas, lancinantes e incuráveis. Seus punhos ardem tamanha a força com que se mantém cerrados. Seus dentes quebram tamanha a pressão com que sua boca permanece pressionada. A raiva, o ódio e a incredulidade são fatores que moldam o (in)consciente do personagem, o fazendo até mesmo delirar entre fantasia e realidade.


Não à toa que o torpor é um fator comum em todas as 10 canções de Em Própria Razão e que a dissintonia entre melodia e lirismo, algo marcante nas canções Quando A Fé Morrer (Onde For) e Por Chance… Por Sangue!, é comum de ser observada. Afinal, a instabilidade da mente e do emocional fazem com que a emoção combata a razão em brigas ferrenhas.


Nesse cenário, o Treva se aliou a Fernando Sanches nas funções de produção e mixagem. Sob tais responsabilidades, o profissional se posicionou como um diretor repleto de sensibilidade. Afinal, enquanto guiou a banda para um caminho de enredo homogêneo capaz de capturar os intuitos que deveriam ser passados em cada enredo lírico do álbum, ele foi responsável de manter a sonoridade em um nível maduro e de qualidade.


Bem equalizadas, mas incapazes, com exceção daquela de Por Chance… Por Sangue!, de oferecerem com nitidez a presença do baixo, as melodias presentes em Em Própria Razão comunicam a experimentação do Treva por diferentes campos do rock. No trabalho, existe indie rock, hardcore, hard rock, blues, blues rock, lo-fi e rockabilly em uma interessante receita melódica.


Fechando o contexto técnico, vem a arte de capa. Assinada por Wagner Loud, ela é abraçada por um fundo preto que, no contexto do álbum, simboliza o luto. Ao centro, um quadro em que a guitarra em chamas é o elemento central, faz menção desde o caos a ideias de eternidade. Por fim, os olhos pincelados nas laterais trazem um quê de exoterismo e misticismo. É a raiva fundida na imprevisibilidade do destino.


Lançado em 19 de setembro de 2023 via El Rocha Records, Em Própria Razão é a angústia de um indivíduo em busca do controle de seu emocional e da própria razão. É o recorte das consequências do caos na vida do ser humano. É o choro, é o torpor, é o sonhar. É um intenso desejo pela retomada da normalidade enquanto o sofrimento lancinante segue seu trabalho enlouquecedor confundindo o que é real e o que é fantasia.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.