Faca Preta - Resistir

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A banda já tem um caminho percorrido, mas ainda pode ser considerada uma criança. Nascida em uma São Paulo (SP) de 2013, a banda, aos dois anos de idade, deu início à sua carreira fonográfica com o anúncio de Adversus, seu primeiro EP. Sete anos depois, o quarteto Faca Preta enfim anuncia Resistir, seu álbum de estreia.


Ruído branco e pitadas de chiados. Ao fundo, um som áspero, distorcido e de energia em ebulição é percebido a partir da guitarra base de Anderson Boscari. Apesar de ainda sonolentas, as frases por ela pronunciadas já sugerem um ritmo mais elétrico e cadenciado. Quando a guitarra solo de Eduardo Elado entra em sincronia com o punch promovido pela bateria de Marcelo Sabino, a canção passa a ter uma silhueta bem definida enquanto seu corpo está prestes a ser finalizado. Trazendo a hipótese para realidade, a canção engrena em uma sonoridade excitante e alegre que contagia com sua levada cambaleante e hardcore. Recriando, com sabedoria e melodia, a sonoridade do rock de um Brasil do início dos anos 2000, a estrutura se mostra firme em sua simplicidade e consciente de seu papel no ramo do entretenimento. Oferecendo noções de influências de nomes como Green Day e The Offspring, Tiro Na Água consegue, inclusive, fazer o ouvinte se sentir à beira do mar californiano dos anos 90, com a máxima simplicidade, descompromisso e leveza que tanto marcaram nomes como Blink-182 e o próprio Green Day. Eis que, quando o ouvinte já se conscientiza estar admirando um produto instrumental, uma voz rasgada invade o ambiente entregando a textura que faltava para Tiro Na Água. Trazendo jovialidade, Fabiano Santos insere um lirismo que dialoga sobre liberdade e um senso de responsabilidade pelos atos misturado com sede de vida enquanto faz com que o ouvinte note, ainda, flertes de semelhança com a sonoridade de nomes da cena nacional como CPM 22 e Os Seminovos.


É como o Sol colocando alegremente sua luminosidade na superfície do mar e comunicando a chegada de um dia quente e ensolarado. Contagiante e em compasso 4x4, a canção consegue se mostrar explosiva mesmo imersa em uma curiosa maciez melódica que evidencia uma estrutura mais encorpada por conta dos tímidos, mas destacados swingares do baixo de Shamil Carlos. No primeiro verso é onde Santos comunica um estilo de canto que traz a mesma estética daquele adquirido por Rodrigo Lima. Rasgado e com fundo suave, ele oferece um lirismo que aborda a construção da vida e do destino. A persistência, determinação e foco, que aqui são conceitos unidos na metáfora do suor, funcionam como a base da construção de um amanhã desejável. Esta é Donos Do Futuro, uma canção de refrão simples, mas que consegue ser chiclete na repetição de seu único verso.


O seu despertar é áspero e intrigante, uma estrutura que refresca à mente do ouvinte as melodias de nomes como Inocentes e até mesmo Velvet Revolver em seu single Headspace. Ainda assim, o que se evidencia quando a melodia matura é uma base melódica semelhante àquela sonorizada pelo CPM 22 em seus primeiros dias. Assim como suas irmãs mais velhas, Dias Melhores se mostra simples, melódica e contagiante, mas com pitadas nostálgicas acalentadoras. Curiosamente, a canção é aquela com um enredo lírico surpreendentemente construído sob uma base de crítica político-social que oferece, além de um senso de comunidade e pertencimento, um empoderamento reenergizante. Ainda assim, a faixa tem consigo uma pegada motivacional que captura com facilidade o ouvinte, sedento pela representatividade de suas aflições cotidianas.


Macia e com pitadas cômicas comunicadas apenas pelos seus primeiros sonares, a canção tem uma base simples e de fácil contágio que, entre versos monossilábicos grudentos, consegue, com pouco, adquirir um caráter de extremo apelo radiofônico. Cães De Rua fala de liberdade, mas também dos obstáculos do destino que até podem ferir, mas nunca derrubar aqueles que têm foco e disciplina. Com solo de gaita trazido por Ricardo Scaff, o qual engrandece a sonoridade, Cães De Rua ainda consegue flertar com maestria com o campo do folk.


Acelerada, contagiante e refrescando à mente do ouvinte frestas da melodia de Vou Deixar, single do Skank, Velha Escola funde swing com uma base tímida de hardcore enquanto dialoga sobre mudanças culturais e de paradigmas, a evolução social. Com pitadas nostálgicas e trazendo semelhanças com o senso de empoderamento oferecido em Dias Melhores, Velha Escola, com o reforço de Fernando Lamb nos destaques aos versos de ordem, proporciona um sentir de força comunitária que é como a sonorização dos verbetes ‘juntos venceremos’ e ‘um por todos, todos por um’.


Crescente, ensolarada e encorpada graças ao rompante do baixo entrando em sintonia com o riff afinado e amaciado da guitarra, a canção, sem demora, oferece ao ouvinte um solo que conquista pela maciez nostálgica a ponto de arrancar arrepios involuntários. Enquanto a guitarra grita a saudade de momentos prazerosos e marcantes, a base rítmica funciona como um elo racional que acompanha seus devaneios saudosos para um primeiro verso de lirismo imponente e empoderado. A faixa-título, então, se mostra como um grito em prol de mudanças socio-político-culturais. A persistência é a voz e a consistência, a postura. A insatisfação de muitos como um grito de basta pelo conservadorismo estrutural.


Já com aspecto de ordem, motivação e empoderamento, a canção tem seu início com rompantes explosivos seguidos de pausas dramáticas. Novamente introduzindo nostalgia e maciez para um enredo que sugere força, a guitarra solo entra como um suavizador entregando maciez em meio ao embrionário levante. Coragem segue o conceito motivacional de Cães De Rua e estimula o ouvinte a se manter fiel às suas essências e construir a vida por caminhos certos, mesmo diante de estratégias manipulatórias vindas de terceiros. É preciso coragem para resistir e prosseguir. É isso o que a canção traz de legado: a conscientização da autoconfiança reforçada pela participação do vocal icônico de Badauí.


Estações de rádios sendo mudadas. Chiados, vozes, músicas clássicas. Quando ocorre a sintonia em um dial que está tocando uma canção de aparência forte, a escolha pela estação radiofônica se mantêm. É assim que o baixo toma a liberdade de puxar o instrumental de maneira semelhante àquela que Mike Dirnt fez em Nice Guys Finish Last, single do Green Day. Lutando De Braços Cruzados é a descrição da contradição comportamental daqueles que se dizem descontentes com determinados setores do sistema e nada faz para mudá-lo. Com refrão construído sob a companhia de coro para dar ênfase aos versos, uma estratégia que já se mostra um padrão do Faca Preta, Lutando De Braços Cruzados dialoga sobre a contradição como sinônimo de falsidade de algumas pessoas, as quais se vendem de um jeito, mas agem de outro. É como uma manipulação às avessas que, no fim, não gera fruto.


De melodia mais cambaleante, mas ainda trazendo um senso de empoderamento, a canção consegue manter a maciez mesmo quando vai maturando um lirismo imponente que, assim como Dias Melhores, vem acompanhado de críticas sistêmicas e políticas que defendem, sobretudo, a liberdade. Com pouco se fala muito e é isso o que Coração Libertário oferece ao ouvinte: o poder da emoção e da voz em prol de melhorias sociais que rompem com os extremismos políticos em vigência em um Brasil desacreditado.


Uma surpresa alegre abraça o ouvinte. Enquanto guitarra, baixo e bateria vão desenhando um uníssono contagiante, forte e com raspas de agressividade, ao fundo se ouve um piano em notas aceleradas e sequenciais que, ao introduzir a estética do boogie-woogie pela desenvoltura de Átila Ardanuy, cria um contraponto interessante no tempo rítmico. Eu Não Quero é como a sequência de Coração Libertário, pois traz consigo a representação da insatisfação política a partir de um lirismo que se revolta contra as estratégias políticas de glorificar as figuras político-representativas. Eu Não Quero é, portanto, uma música que funciona como um documento que exprime um mundo ideal a partir das negações. Um mundo regido pela igualdade, humanidade e policiamento correto. Esse é o desejo que representa um cenário que deveria ser o normal, quando, na verdade, é distópico.


Apesar da batida em 4x4, a canção comunica uma base hardcore com protagonismo de uma guitarra solo que sobressai entre valsas melódicas, mas levemente azedas. “Fabricaram a realidade”, é o verso cantado a plenos pulmões e em coro no despertar do primeiro verso. É assim que Brecht começa seu enredo de crítica à prática jornalística, que aqui é tida como a representatividade dos conceitos meritocráticos, personalistas e de manipulação da realidade em prol dos interesses editorias. Não à toa que o verso “não existe jornalismo, tudo é publicidade” é o verso que define o espírito contestador de Brecht.


É como a brisa de um entardecer de verão com aroma de férias e despreocupação. A leveza e a tranquilidade são características que dominam o sonar uníssono da introdução com generosa delicadeza. Trazendo consigo uma mistura de indie rock com base hardcore, a canção tem uma construção do ritmo lírico que, apesar de serena, traz consigo breves semelhanças com aquela de Carta Aos Missionários, single do Biquíni Cavadão. Sete Sete vem acompanhada de um enredo que rechaça os julgamentos depreciativos e um comportamento regido pela falta de energia em se libertar da zona de conforto rotineira e marasmante. Sete Sete, inclusive, traz uma interação mais direta entre Santos e Boscari, os quais se dividem entre os vocais criando uma harmonia ainda mais contagiante nessa que se mostra outro cativante single de Resistir. Harmonia essa que é ainda mais engrandecida pelo sonar do piano elétrico, que traz uma brisa new wave tão embriagante quanto aquela de Boys Don’t Cry, single do The Cure.


Macia, contagiante e explosiva em sua levada introdutória pop rock. Enquanto a melodia simboliza a limpidez de um céu que traz energias esperançosas e a oportunidade de recomeço, o lirismo traz consigo o relato de uma pessoa imersa em sentimentos depreciativos, mas que anseia por chances de romper com esse marasmo tristonho. Suportar Até O Fim é mais que uma música inspiradora tal como Dias Melhores e Cães De Rua, é um hino motivacional cheio de consciência, respeito e sutileza ao lidar com um assunto tão delicado. Uma música que instiga a não desistência, a autoconfiança e a sabedoria de que sempre existe alguém com quem contar nas horas sombrias.


Recriando a sonoridade do rock brasileiro do início dos anos 2000, o Faca Preta apresenta um trabalho cheio de nostalgias rítmicas e letras fortemente motivacionais que inspiram o amor-próprio, a autoconfiança e, principalmente, o empoderamento. Resistir não é só um trabalho que fala com os jovens social e politicamente oprimidos, fala com uma sociedade sedenta por representatividade e amparo.


Apesar de parecer um produto teen, o álbum de estreia do quarteto paulistano consegue mesclar melodias rápidas, enérgicas e contagiantes com enredos líricos que inspiram a união e a coragem de desabafar as insatisfações sociais. Com faixas de forte cunho protestante como Dias Melhores, Coragem, a faixa-título, Coração Libertário e Eu Não Quero, o Faca Preta imprime uma consciência social que tenda romper o aparente torpor político-manipulatório de que a sociedade brasileira caminha para evolução.


Mesmo com tais conteúdos marcantes pelo seu critério crítico e imponente, Resistir também é repleto de músicas de enredos intimistas e sensíveis que fazem menção às emoções prejudiciais ao bem-estar. Suportar Até O Fim é um ótimo exemplo disso, pois além de mostrar o respeito do quarteto em abordar um assunto tão delicado como esse, evidencia que existem sempre  momentos na vida que pedem mais força e apoio.


Nesse contexto, o Faca Preta conduziu o álbum a partir de uma mescla de gêneros que teve como base o hardcore. Contudo, entre suas 13 faixas, Resistir também apresentou o indie rock, pop rock, folk, hard rock, o pop punk, a new wave e até mesmo o boogie-woogie formando uma atmosfera rica em harmonias e sempre capaz de contagiar o ouvinte com suas estruturas majoritariamente simples.


Eis que mora, inclusive, um desafio especial a Adriano Parussulo, quem atualmente representa o dono do groove do Faca Preta. Substituir Carlos e conseguir reproduzir os corpos que entregou às músicas de Resistir será como uma prova de fogo a ser superada, mas é algo de Parussulo conseguirá atingir, certamente.


Com produção de Ardanuy e Sabino, Resistir mostrou maturidade sonora, conhecimento rítmico e sabedoria na construção de melodias que entretém e fazem refletir. Ainda assim, é vendido como um produto de protesto, algo que, inclusive, é evidenciado a partir da arte de capa.


Assinada pelo Estúdio Miopia, a arte traz um conceito que mistura luto e, claro, o levante. Adornada pelo preto no plano de fundo, a obra traz um círculo vermelho no centro que abriga a figura de um menino que está prestes a lançar seu coquetel molotov. Indignação e insatisfação como motivações para a mudança estrutural, é isso o que a obra oferece ao ouvinte.


Lançado em 12 de agosto de 2022 via Repente Records, Resistir é um álbum que fala com a juventude ao representar suas angústias pessoais. Ao mesmo tempo, é um trabalho que, reciclando a sonoridade dos anos 2000, dá apoio, força e motivação para uma sociedade desamparada, desmotivada, manipulada e com desejos efervescentes por mudança.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.