Ratos de Porão - Necropolítica

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Tempos de instabilidade cobriram o Brasil desde 2018, momento em que o país viveu sua mais recente campanha presidencialista. De lá para cá, o setor governamental do país tem sido motivo de desorgulho, revolta e indignação graças às atitudes de Jair Messias Bolsonaro à frente da presidência. Tal contexto inspirou o Ratos de Porão a romper o hiato de oito anos e lançar Necropolítica, seu 13º álbum de estúdio.


Um barulho de ar entrando pelos tubos. Apitos são ouvidos como se anunciassem a presença de batimentos cardíacos em um corpo acamado. De repente, a distorção é ouvida ao fundo como um personagem em processo de despertar. É visível que tal figurante está com o sangue fervendo, as pupilas dilatadas, os punhos firmemente fechados e a feição estritamente franzida. É como se a raiva e o ódio estivessem a um passo de explodir. E isso vai acontecendo de maneira paulatina, de forma a causar um torpor sequencial e linear enquanto a melodia vai tomando traços de base punk e de superfície thrash metal. Quando a bateria de Boka assume repiques rápidos, a transição para a segunda parte introdutória é feita. Eis que Alerta Antifascista desemboca em um terreno metalizado com traços de screamo que são lançados pelo urro quase gutural de Gordo. É nesse momento que, inclusive, a linha estridente do baixo de Juninho assume certo protagonismo a entregar sabores de um azedume extra. A partir de um thrash metal mais acelerado que beira o death metal, Alerta Antifascista evidencia seu papel protestante ao trazer posicionamentos críticos a respeito de tudo o que Bolsonaro representa para as sociedades tanto brasileira quanto global. Desde o retrocesso da democracia ao boom das mentiras trazidas pela sua campanha de fake news, a faixa evidencia a intolerância, ironiza a má governança e se compadece da realidade de, em vista do governo atual, o brasileiro não ter mais motivos para sonhar.


A bateria surge em um súbito solitário regido por acelerados golpes em seus tons. É então que um azedume potente se evidencia, a partir da guitarra de Jão, na forma de um thrash metal acelerado tal qual aquele de Alerta Antifascista. Aqui, por outro lado, tal aceleração é assumida até mesmo pelo vocal que, majoritariamente rasgado, vai despejando o lirismo como regurgitações involuntárias. Em Aglomeração, o ponto chave é a ferrenha crítica à política anti-vacina adotada por Bolsonaro durante a gestão de crise da pandemia.  O mais interessante é a forma como Gordo encontra de escrachar seu ódio sobre a má administração do SUS, além de se exaltar perante a forma como Bolsonaro colocou a fé cristã de cunho evangélico como único e mais eficaz escudo contra a Covid-19. Afinal, “Jesus é quem protege a aglomeração”.


Explosões são vistas ao longe. O fogo domina aquilo que um dia foi um gramado esverdeado. Explodindo em uma estrutura linear de nítida agressão e rispidez, Passa Pano Pra Elite é uma canção em que, sob um solo mais metalizado, o Ratos de Porão questiona a proteção dos interesses da elite nacional, da extrema-direita. Desde o alavanco do agronegócio focado no pasto de gado para a posterior produção de carne à corrupção, Passa Pano Pra Elite evidencia que, apesar de ser focada na era Bolsonaro, que todos os governos presidenciais brasileiros têm o costume endêmico de defender interesses de uma parcela econômico-populacional ante a necessidade geral para que o país engate em um crescimento sadio.


A guitarra vem áspera e em curtos momentos de solidão. Seguida por um baixo de linhas firmes e encorpadas, ela acaba assumindo a alma de uma melodia áspera e agressiva em que a bateria cria uma levada cuja sonoridade de metranca é curiosamente amena. Sob uma atmosfera punk, a faixa-título assume o dever de ser uma espécie de levante contra a impunidade e intolerância. Trazendo em evidência o racismo como base das ações governamentais, a faixa-título claramente inclui, no termo, a questão da homofobia e do conservadorismo agudo que regem o cerne das ações e projetos de nível nacional. Contudo, esse é um lado secundário, pois o que o lirismo traz de urgência é que, sob a ótica de um discurso de ordem, se assumiu o controle da decisão de quem vive e quem morre em uma clara alusão crítica novamente a respeito da gestão do serviço público de saúde em tempos de pandemia.


Um uníssono explosivo, metalizado e áspero, mas curiosamente contagiante e atraente, se firma nos primeiros instantes introdutórios.  Em um segundo momento, a melodia traz aquele azedume já tradicional da faixa-título, mas sob uma base estranhamente mais amaciada. De guitarra com presença de fast picking, Guilhotinado Em Cristo assume a forma de um brutal e típico thrash metal, mas cujo vocal surge curiosamente mais compreensível em seu drive grave que exala um lirismo que discute a má fé e a estranha política religiosa assumida pela bancada evangélica do atual governo.


Hipnotizante e até mesmo levemente nauseante, a introdução é regida por uma melodia curiosamente mais digerível cujo protagonismo recai sobre o groove do baixo que se apresenta mais limpo e encorpado. Com cadência mais contagiante e popular, a melodia funciona como uma sirene, um aviso para que se redobre a atenção. Afinal, em O Vira-Lata o que existe é a crítica ao comportamento nacionalista vendido por uma falsa imagem pró-Brasil que ocasiona, além da hiperinflação no combustível, a produção de carne como consequência do alto índice de desmatamento para a criação de pastos. Claro que Gordo ainda faz menção na tentativa de Bolsonaro garantir hegemonia política ao tentar adquirir a parceria da bancada de centro. Metalizada e de sonoridade enérgica, O Vira-Lata é uma canção com forte cacife de single de Necropolítica.


Rapidez, azedume, trêmulo picking e um embrionário caos. Regida por um grave screamo gutural, G.D.O. surge como um thrash-death metal que dialoga, assim como Alerta Antifascista, com a questão da fake news. Contudo, aqui a crítica ao tema é mais profunda ao trazer em evidência o funcionamento da disseminação da desinformação através dos algoritmos digitais. Ao mesmo tempo, a canção exala um sentimento de incredulidade perante a ausência de senso crítico da grande parcela da população, que se deixou levar por tais conteúdos falsos sem nem ao menos dar voz a questionamentos sobre aquilo que está sendo detalhado. Portanto, G.D.O. é sobre a política da desinformação e sobre o caos social que ela cria.


Eu digo federrrr com todos os erres”. É com essa frase que uma melodia explosivamente hardcore desperta. Com um uníssono sujo, mas ao mesmo tempo melódico, Bostanágua é uma canção rápida e cômica em sua forma de protestar contra a figura de Bolsonaro. Ainda assim, a canção tem seu potencial para se posicionar ao lado de O Vira-Lata na lista de singles de Necropolítica.


O amanhecer é de um típico thrash metal. Com trovões pontuais e uma chuva ácida banhando o solo regido pela escuridão das densas nuvens, Entubado é guiado por um timbre agudo e rasgado assumido por Gordo que chega até a criar certa semelhança com o vocal de Rob Halford na era Painkiller. Novamente sob o terreno thrash, o Ratos de Porão convida o público a se juntar em uma crítica quase desesperada sobre alguns acontecimentos que embasbacaram o brasileiro durante a pandemia. Alguns deles, retratados na canção, são a estratégia de imunização por rebanho para conter a disseminação do Coronavírus e o escândalo envolvendo a falta de tubos de oxigênio nos hospitais públicos de Manaus. Entre frases metalizadas, há também a evidência de uma visão negativa da medicina, que se apoiou em medicamentos sem constatações suficientes sobre sua eficácia contra a Covid-19. É como Gordo diz: “medicina sem função, sem razão”.


Caótico, explosivo e quase ensurdecedor. Os primeiros sonares de Neonazi Gratiluz trazem uma brutalidade embrionária que é percebida perante uma melodia thrash que serve de trilha sonora para um lirismo sobre a regência do ódio perante um corpo aparentemente são. É um conteúdo que trata simplesmente sobre a falta de empatia, mas que em suas outras camadas é possível perceber críticas às crenças negacionistas como a Terra Plana, as quais ganharam considerável força e patrocínio durante o governo Bolsonaro.


Mesmo tendo demorado oito anos para que produzisse um novo material, o Ratos de Porão matou a sede de sua base de fãs com sua postura sangue no olho. Afinal, Necropolítica é um álbum brutal, agressivo, caótico e ríspido que exala toda a incredulidade, a raiva, o ódio e o descontentamento ao ver o caminho que o Brasil está trilhando sob as rédeas de uma figura que não apresenta qualquer senso de empatia.


Se movendo por entre os subgêneros thrash metal, metal, hardcore e punk, o álbum traz um senso de urgência desesperado. Afinal, a cada lirismo e a cada esquina melódica, é como se os quatro integrantes do grupo paulistano estivessem com olhares pasmos e agitados chacoalhando não apenas o Congresso Nacional, mas a população como um todo, na tentativa de chamar a atenção para tantos acontecimentos inconcebíveis que moldaram o Brasil nos últimos anos.


É fato que o ponto central de Necropolítica é exaltar a crítica ao Governo Bolsonaro, mas conforme se cava os lirismos, se percebe posicionamentos negativos perante a gestão da pandemia e do sistema público de saúde. O descaso para com a sociedade, a prestigiação dos interesses de uma minoria extremista, a economia ante o bem-estar social e a propagação desmedida de desinformação como estratégia para favorecer a bancada bolsonarista no congresso são outros assuntos evidentes no álbum.


Evidentes estão esses assuntos também sob a ótica da mixagem. Afinal, ao comando de Fernando Sanches, esse campo de atuação conseguiu construir um som que, por si só, transmitisse não apenas a raiva e o ódio, mas o máximo descontentamento no regimento da política nacional em tempos de crise sanitária. 


Aliado a Sanches está o próprio Ratos de Porão. Responsável pela produção, o grupo regimentou toda a energia de insatisfação e incredulidade exalada pelo quarteto e, imergindo ainda mais em tal ideia, finalizou o álbum de maneira a promover um som consistente e que narrasse uma história de profundezas soltas, mas de superfície linear de maneira que todas as 10 faixas se conversassem de alguma forma.


Fechando o escopo de Necropolítica vem a arte de capa. Feita por Raphael Gabrio, ela é denotativamente homogênea ao título do álbum e aos seus 10 conteúdos líricos. Afinal, abraçada por um tom vermelho sangue, ela traz, em seu centro a figura da morte de asas morcegueiras abertas de maneira a evidenciar que seu coração consiste em um indivíduo acamado e entubado de maneira a receber as instruções de dois seres umbralinos. Tal trinca de indivíduos é rodeada por ossaturas avulsas e desejada por um grupo de mãos trevoso. É a perfeita alusão ao Congresso Nacional: um lugar sombrio e malévolo guiado pelo cinismo, egoísmo e egocentrismo.


Lançado em 13 de maio de 2022 via Shinigami Records/Fuzz On Discos, Necropolítica é um álbum conceitual que narra os descontentamentos mais profundos perante a era bolsonarista. Regido pelo áspero e raivoso thrash metal, o disco é como um grito de desabafo e de súplica para que as trevas vendidas como nacionalistas tementes a Deus deixem o Brasil em paz.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.