NOTA DO CRÍTICO
Foi durante o momento de introspecção autoimposto pela pandemia que o power trio campineiro Terra Mãe se reuniu e germinou Vontade Que Não Morre, seu novo EP e o produto que concentra, segundo os próprios integrantes, o som que de fato representa o trio.
É como um olhar brilhante em decorrência de lágrimas represadas em seu interior prontas para serem despejadas como um filete de água pela face. A sua frente, está um anoitecer de tons místicos abraçado por uma chuva tão fina que forma um arco-íris na dianteira do Sol poente. É assim que a mistura de nostalgia e melancolia envolve calorosamente o ouvinte em um aconchego amplamente sedutor trazido pelas notas iniciais providas pela guitarra de Gustavo Paschoalin. Proporcionando uma melodia que recria a sonoridade do Alter Bridge na fase One Day Remains, o instrumento é logo acompanhado pela precisão e peso da bateria de Robson Rodrigues, quem, a partir de uma levada minimalista, insere dramaticidade à sonoridade. Tomando um corpo dramático-emocional que, com o acréscimo do grave encorpado do baixo, caminha pelas roupagens do rock alternativo, post-grunge, indie rock e até uma espécie de post-britpop, O Que Enlouquece É A Certeza, Não A Dúvida é indiscutivelmente uma canção de sangue nostálgico-melancólico que ainda é agraciada por um solo em que a distorção da guitarra de Igor Nogueira é produzida com tamanha agudez que parece ser um sonar tão transcendental que pende para algo interdimensional.
Um chiado surge e se esvai como um sopro que dá passagem para uma guitarra de riff que recria a maciez melancólica da canção anterior. Em contrapartida, os elementos sonoros logo se fundem e formam um princípio de stoner rock que, apesar de não dar vazão à agressividade, exorta um flerte com a sonoridade do Scalene principalmente pela consistência com que o baixo rompe a linearidade melódica. Ao mesmo tempo, Primavera Assalta A Angústia traz uma profunda ambiência noventista que consegue ser ainda maior que aquela presente em O Que Enlouquece É A Certeza, Não A Dúvida. Não por acaso, é possível notar uma mistura de Coldplay com Snow Patrol e uma leve modernidade do alternativo proporcionada pelo Supercombo. Desembocando em um stoner cuja extrema dramaticidade lembra a melodia de Sail Away, single do Armored Dawn. Ao mesmo tempo, o trecho funciona como a chegada de uma paisagem bela agraciando o nebuloso terreno do medo e da incerteza. É como a luz do Sol rompendo a grossa camada de nuvem escura que paira pelo céu. A redenção enfim é alcançada.
A bateria vem solitária trazendo, logo de início, o principio da cadência rítmica. Eis que a guitarra, unida ao baixo estridente e áspero, promove um encorpamento sonoro macio regado em melancolia. A linearidade sonora é como a dualidade de emoções que pairam no íntimo do indivíduo, é como o caos da indecisão, o temor causado pela insegurança. Não por menos, a paisagem que se propaga é a de um quarto desorganizado em que claridade interna provém dos relâmpagos visíveis pelo vidro da janela molhado pela forte chuva. Na cama, está um personagem em clara expressão de angústia, sentado com as mãos na cabeça. Seu olhar é triste e comunica certo tom de desespero. Os olhos já estão inchados pelo choro, mas não há mais lágrimas no seu leito emocional, apenas o desconforto do medo. Depersistir carrega, assim como Primavera Assalta A Angústia, uma intensa dramaticidade que é curiosamente contagiante e capta o ouvinte com sua visceralidade mista de stoner e um rock alternativo de mesma energia de Sirens, single do Pearl Jam.
O EP pode ser curto. O EP pode ser rápido. Porém, o EP não pode ser definido como ralo em emoção. Intenso, dramático, melancólico e nostálgico, Vontade Que Não Morre é um trabalho repleto de sentimentos que representam o medo, a insegurança e a angústia sentida pelo indivíduo.
Transitando livremente pelas roupagens do rock alternativo, do indie rock e do post-grunge, o que melhor define a sonoridade do EP é como um produto post-rock. Afinal, Vontade Que Não Morre ousa, nos devaneios de suas faixas, proporcionar diferentes níveis de experimentação de sons e texturas.
Com elas, o Terra Mãe consegue confortar e aconchegar o ouvinte mesmo nos ambientes que denotam uma superfície imprevisível e incômoda. Esse é, inclusive, um grande mérito de Victor Miguel, quem proporcionou uma mixagem bem equalizada a tal ponto de fazer os sons não convencionais casarem com a proposta rítmica e unir, a esse caldeirão de ingredientes, também o lo-fi.
Esteticamente, o que permite tamanha liberdade criativa é a autoprodução de Vontade Que Não Morre. Sem ela, possivelmente não haveria uma emoção genuína que proporcionasse ao ouvinte a experimentação tátil de tais sentimentos. Um exercício que excedeu a sensibilidade.
Fechando o escopo do EP vem a arte de capa. Feita por Rodrigues, ela traz uma ambiência fantasmagórica que conota a saudade ao conectar o presente e o passado. Trazendo um cenário que parece uma cela de prisão, o trabalho de Rodrigues evidencia a dualidade entre a vontade pela liberdade e a realidade do enclausuramento motivada pela pandemia. Vontade Que Não Morre é o puro desejo de exercer o direito de ir e vir.
Lançado em 22 de março de 2022 de maneira independente, Vontade Que Não Morre é dramático, é intenso, é melancólico, é nostálgico. É a experimentação repleta de texturas sensitivas. É um trabalho que representa a dualidade emocional de uma população que foi restringida da liberdade, mas não da vontade do se sentir livre.