Cajupitanga - Ensaios Férteis

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (3 Votos)

Ele é definido como uma experiência. Um encontro frutífero e desafiador que surtiu na composição de um novo material. Pegando o embalo da criatividade depositada em Tradição/Tradução, o duo baiano Cajupitanga concebeu Ensaios Férteis, seu segundo trabalho e primeiro EP.


O cantarolar dos pássaros junto à correnteza da água e os dedilhares do violão formam a mais pura receita da simplicidade, da maciez e da tranquilidade. Esquecer os problemas e se deliciar com a doçura suavizante da melodia pode ser o principal intuito para com Primeiro De Maio, uma música que se divide livre e abertamente, por meio das ondulantes finalizações sonoras, entre a MPB, o baião e o pop. O mais fidedigno experimentalismo.


Uma conversa unilateral é ouvida ao fundo. Silêncio. Assim como em Primeiro De Maio, o violão surge puxando a melodia com evidente doçura e delicadeza. Evoluindo para um ambiente que se mistura entre o trap e a lounge music, a canção ganha uma atmosfera curiosamente fantasmagórica a partir do cantarolar de uma voz agridoce ao fundo e ecoante de forma a parecer onipresente. Prata é uma canção de base amena cujo lirismo tem o nítido intuito de venerar a vida a partir do se deliciar pelo banho de Sol nascente por entre a janela aberta. A chegada do novo dia é a chegada de mais vida, de mais oportunidades, de mais promessas. Entre grooves descompassados, flertes com a ambiência rap e os tilintares do agogô, Prata dá sequência ao experimentalismo já marcante do Cajupitanga.


As sobreposições dos riffs de guitarra agudos e súbitos dão uma sensibilidade amornada que acompanha o amanhecer do novo cenário. Dando vasão para a entrada de um vocal preciso, mas sereno, de Arthus Fochi, Mormaço, Arabutã mistura um axé de cadência extremamente lenta com o lo-fi, o pagode e o samba enquanto dialoga sobre romance e a sensação de pertencimento em meio à multidão.


Um bumbo de cadência acelerada e ácida já comunica uma velocidade sutilmente mais enérgica. Crescente, ele é acompanhado de inserções pontuais do grave do baixo que tentam suavizar, em vão, essa adrenalina. Trama é mais um produto que é calcado no lo-fi e convida o ouvinte a se embriagar por entre sua melodia dissonante e enigmática.


Misturando rap com uma temática industrial, a melodia em construção consegue, curiosamente, flertar com a melodia igualmente experimental de Voodoo Lady, single do Live. Entre subgraves e flertes com o trap, De Manhã se matura como a sonorização do estado hipnótico-embriagante-ilusório entre a sonolência e o senso de racionalidade. O despertar é a separação entre o imagético, abstrato e fantástico com o real. E assim como é a bagunça mental no processo despertante, a sonoridade também encarna esse preceito transitante.


Dissonâncias misturam elementos do axé com olodum enquanto fluem para um súbito estado de consciência e sincronia proporcionados pelo samba em união ao post-rock. Cheia de texturas, Vira-Terra é um perfeito interlúdio para Sereno, uma faixa de aroma e textura indígenas que transportam o ouvinte direto para o seio da natureza. Suave e contagiante em sua tranquilidade, Sereno é construída inteiramente sob um terreno transcendental que, como um mantra, acalma os ânimos e coloca a estrutura espírito-corpórea de volta aos eixos.


Vozes se confundem entre uma improvisação repentina de violão. Lá Na Varanda é um novo interlúdio que representa a experiência de observar, sentir e ouvir a vida do alto. Enquanto as ondas do mar denotam movimento, as falas sugerem vida e interação em um ecossistema embriagante de tanta suavidade admiradora.


Aspereza e dissonância fazem a paleta de cores do quadro que é Tardia, um capítulo de respiro que serve de introdução para O Assalto, uma música de sonoridade madura e equilibrada entre seus mergulhos entre o samba e o pop. Com uma cadência percussiva quebrada seguida por um vocal de interpretação alucinante, O Assalto dialoga sobre a sensação de desolamento associada à necessidade da fé ou de algo para se apoiar e garantir motivação.


Uma voz grave e indecifrável lança algumas palavras incompreensíveis quanto a melodia, em um súbito mareado, se encaminha para algo que soa como um mantra umbandístico. Terreiros Dos Julius devolve a tranquilidade e a paz anterior com tanta leveza que chega até mesmo a dar ao ouvinte a sensação de um reconfortante torpor.


Ensaios Férteis é, simplesmente, a nata do experimentalismo, da despreocupação com relação ao gosto popular e à estrutura radiofônica. Um trabalho de um duo que, guardadas as devidas proporções, assim como o System Of A Down e Serj Tankian, apostam na vanguarda musical a partir de sonoridades nem sempre conexas e coesas.


Ainda assim, mesmo misturando MPB, pop, baião, trap lounge music, lo-fi, olodum, post-rock, axé, pagode e samba, existe um diálogo evidente no trabalho. A relação com a fé, o pertencimento e o acesso à tranquilidade em tempos de extrema pressa e foco no relógio moldam uma estrutura de enredo que convida o ouvinte a pensar em uma espécie de pausa. Uma respiração mais profunda que o leve ao mais puro estado de êxtase relaxante.


A necessidade de se encontrar e conhecer as próprias necessidades são outros detalhes intrínsecos até mesmo nas melodias estruturadas simples e unicamente por Candioco e Francisco Viva, nomes que tiveram apoio de Bernardo Rezende na criação de uma arte que representasse todo o cerne de Ensaios Férteis. Seus traços modernistas têm clara influência de Tarsila Do Amaral em seus desenhos que dão vida às palavras movimento, origem e equilíbrio. 


Lançado em 20 de outubro de 2022 via Cantores Del Mundo, Ensaios Férteis é um EP que mostra que é possível a arte existe até mesmo na desarmonia. Não por menos, ele é um trabalho que sonoriza o conceito de arte povera ao mesmo tempo que a eleva a um patamar de experimentalismo modernista que lhe confere um status inegavelmente vanguardista.


























Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.