NOTA DO CRÍTICO
Quatro anos depois de Attention Attention e dando sequência a uma série de boas avaliações na Billboard que começou com o duplo platina The Sound Of Madness, o Shinedown enfim retorna aos holofotes com o anúncio de Planet Zero, seu sétimo disco de estúdio.
O horizonte é repleto de uma paisagem de um nascer do dia resplandecente. O céu está limpo e a luz do Sol, que começa a aparecer por detrás das montanhas que encobrem um vale esverdeado, paira sobre a atmosfera com uma luminosidade motivacional e enérgica. É como se estivesse indicando a chegada de um grande momento. É assim que uma sonoridade levemente ácida, cujas notas adocicadas que constroem uma ambiência new wave, dá as boas vindas ao ouvinte com 2184, um interlúdio de cunho puramente estimulante.
Em forma de medley, 2184 acaba que, ao engatar uma crescente sonora, flui para um uníssono rápido construído entre golpes sequenciais acelerados na caixa da bateria de Barry Kerch e do riff regado a azedume da guitarra de Zach Myers. Em poucos segundos, aquilo que já foi um grande plot twist vira veludo quando Brent Smith diz em tom de ordem: “don’t trap”, momento em que a canção mergulha em uma métrica acelerada, grave, excitante, metalizada e com raspas de aspereza. Entre versos épicos e uma mistura iminente de metal alternativo e hard rock, o Shinedown busca, com No Sleep Tonight, rechaçar a impunidade, o autoritarismo, a censura e a impotência social que fecunda diante de governos extremistas. De outro lado, a faixa serve para criar um senso de empoderamento, de autoestima e autovalorização, ingredientes que fazem com que as pessoas lutem pelos seus próprios direitos e liberdade de expressão.
Explosivo, áspero e metálico. Os primeiros sonares já expõem o típico som do Shinedown a partir de uma melodia baseada no metal alternativo. Existe certo tom de obscuridade e tensão dramática na estrutura rítmica em formação que, trazida pelo riff áspero e azedo da guitarra de Zach Myers na estética stoner rock, desemboca em um primeiro verso guiado pelos solitários e secos golpes do bumbo de Kerch que logo dão vasão para a entrada de um vocal de timbre ácido e imponente. É Smith trazendo uma mistura de ordem e incredulidade à faixa a ser desenhada. Com notáveis pitadas de swing misturadas na receita alternativa do metal, a canção possui um instrumental explosivo que serve como trilha sonora de transição que, por esse motivo, é executada sempre entre versos e como ponte para o pré-refrão. É no refrão, porém, que a faixa-título ganha contornos crescentes e melódicos a ponto de tangenciar em uma estrutura pop que faz com que o trecho seja mais facilmente digestivo e consiga contagiar o ouvinte. Claro que o poderio rítmico tem um motivo de ser, afinal, o lirismo vem adornado de um enredo que narra um planeta regido pela insanidade e alude ao sentimento atual massificante de falta de segurança e representatividade.
O sonar é semelhante ao do mellotron. Suas notas agudas e estridentes executadas em uma sincronia quase desarmônica quando rompantes ácidos da guitarra invade a atmosfera espacial e tecnológica. “Welcome to Planet Zero”, diz uma voz feminina metálica. É ela quem faz uma introdução de boas vindas ao viajante com um recado que sugere a verificação, na lista obtida, de todos os discursos aprovados, classes protegidas e comportamentos aceitos no planeta a ser habitado. E o mais importante: é para começar o dia com indignação. Apenas com esse breve discurso que preenche Welcome, outro interlúdio de Planet Zero, se percebe uma introdução a um conteúdo lírico protestante que, muito provavelmente, será adornado por melodias agressivas para dar peso aos possíveis versos regados a inquietação.
A guitarra amanhece com um grave dramático que é acompanhado por um dulçor entorpecido e ácido vindo das notas do teclado. “Suicide, suicide 1, 2, 3”, introduz Smith de uma maneira amena, mas que, pelo peso das palavras, deixa o ouvinte de sobreaviso para um lirismo que, definitivamente, pode ser chocante e incômodo. Existe, na interpretação lírica, um tom de desapontamento e desabafo que conduzem o espectador consegue identificar singelas críticas ao comportamento social intolerante e até mesmo conservador. Atitudes que ferem e que incitam uma fraqueza emocional que podem levar a destinos drásticos daqueles que, delas, se machucam. Contudo, a partir do pré-refrão, a narrativa engata em mensagens motivacionais que estimulam um senso de autoestima inquebrantável. De uma delicadeza estimulante e pegando os resquícios do mês do orgulho LGBT, Dysfuntional You fala, simplesmente, da assumição da verdadeira identidade, de romper a barreira do medo da exclusão social e expor o autêntico eu. É como o próprio Smith diz nos seguintes versos quase falados: “life's too short to play someone else 'cause being normal is just a trap”. Ainda assim, é inegável que Dysfunctional You retrata uma realidade dramática de cunho realista e que se baseia em hipóteses do que poderia ter acontecido se o personagem lírico tivesse um pouco mais de força emocional.
A guitarra vem distorcida, grave, solitária. Em seguida, a bateria surge golpes sincronizados na caixa proporcionando uma textura de um agudo quase estridente. É então que a canção assume uma melodia repleta de groove no sentido mais estrito da palavra. Apesar de soar macia, a sonoridade é imersa em uma pressão curiosamente cativante que acompanha o conteúdo narrativo com densidade. Com versos falados que trazem questionamentos reflexivos, a faixa evidencia, em sua essência de dramaticidade embrionária, o medo, o caos, a insegurança e a sensação de impotência. Dead Don’t Die representa muito do temor que se criou durante a pandemia sobre como seriam, ou serão, os próximos dias. O receio de uma nova catástrofe, a fuga do pensamento de haver outros momentos em que ser insuficiente seja inevitável.
Um som, cuja estética cria uma atmosfera interplanetária, se ouve de maneira linear. Assim como em Welcome, a mesma voz feminina metálica retorna em Standardized Experiences para averiguar se a viagem está no agrado dos viajantes e reforça a necessidade regulamentar da padronização.
O beat eletrônico é acompanhado de uma guitarra que proporciona um sonar de maneira a recriar uma atmosfera árabe e hipnótica como um encantamento de serpentes. É com essa linearidade que a melodia se fortifica e passa a receber o conteúdo lírico que, na ocasião, é interpretado em um tom que flerta com o desprezo. Contudo, a canção implode em uma melodia explosiva regada a uma guitarra que se divide entre acidez e grave enquanto a bateria se movimenta de maneira bruta promovendo um som consistentemente forte. Com direito a um refrão de melodia marcante, America Burning segue aquilo que foi dito em Standardized Experiences e aborda a padronização social estadunidense. Mas não só isso. A canção também aborda, de forma caótica e hipnótica, a dicotomia comportamental da conformação e a aceitação ante a sensação de impotência ao se mostrar contra diretrizes encaminhadas por um poder maior. É a censura daqueles que, aos olhos da lei, são baderneiros por pensar diferente. É a obrigatoriedade da concordância e a incessante educação mental da não harmonia de ideais. America Burning é a realidade de um país imerso em autoritarismo e uma população refém de regimentos que encurralam até o rendimento impositivo.
Sons agudos e eletrônicos surgem acelerados como se estivessem indicando falha no sistema computacional. Quando tal ambiente ganha uma energia épica com a entrada de um sonar aberto semelhante ao de instrumentos de sopro, a voz feminina metálica de Welcome e Standardized Experiences retorna e pede para não haver pânico. Do Not Panic, o quarto interlúdio de Planet Zero, é uma faixa que pede para que os viajantes não pensem criticamente e não procurem a verdade. Em outras palavras, reforça para manter a padronização.
Uma cenografia nostálgica como o entardecer de um dia de verão ao som do vaivém das ondas do mar se forma no imaginário do ouvinte aos primeiros sonares do violão. Macia, melódica e com pitadas de melancolia, a linearidade vai inserindo sensações de um confortável abraço. Casando com tal energia, Smith entra com uma interpretação lírica sensitiva que também consegue imprimir pitadas saudosistas intensas. Sendo desenhada apenas entre voz e violão, a canção assume um caráter intimista e emocional que vai adquirindo tons dramáticos ao passo que o pré-refrão vai sendo executado, o piano de notas melancólicas vai tomando espaço e uma valsa de violino passa a pairar pela atmosfera. A Sympton Of Being Human é uma música sensível que narra a necessidade do se sentir pertencente, abraçado e incluído na própria comunidade. É sobre ser aceito, mesmo tendo uma personalidade fora do padrão socialmente bem quisto e comum.
Sons semelhantes aos chirriares do grilo são ouvidos. Logo em seguida, a guitarra acústica entra com forte presença ao começar a desenhar uma melodia melancólica que, acompanhada por uma levada tímida da bateria, tem no baixo de Eric Bass a base que ajuda a intensificar o teor dramático. Contudo, a composição é adornada por um refrão melódico, macio e comovente que traz consigo uma aura motivacional. Não à toa que Hope é uma canção que, como o próprio nome sugere, incita a confiança na esperança. Muito além disso, a canção também estimula que as pessoas mostrem seus verdadeiros ideais, crenças e opiniões, mesmo que fujam do padrão. Não é por menos que, quando Smith entoa a metáfora “so hang on to the absurd”, ele simplesmente está querendo que o ouvinte se agarre nas suas próprias opiniões e divulgue a essência do seu pensar.
A melodia, apesar de ácida, traz uma pitada motivacional e até mesmo excitante. Em meio a essa alegria embrionária e cínica, a voz feminina metálica retorna para, em A More Utopian Future, apesar de falar de esperança, segue o conceito dos interlúdios anteriores para reforçar a necessidade de assumir comportamentos socialmente aceitos.
Uma embrionária excitação se constrói a partir do uníssono quase ondulante criado entre guitarra e bateria. Os rompantes graves do baixo ampliam a densidade sonora que vai amadurecendo na melodia ainda em construção. Segundos mais tarde, o ritmo assume uma ambiência explosiva graças a atuação mais intensa de Kerch. Tendo raspas de um azedume passageiro, a canção se apoia na base grave para criar um senso de indignação que flui para um refrão de estrutura curiosamente contagiante. Clueless And Dramatic acaba dialogando, assim como Welcome, Standardized Experiences, America Burning e Do Not Panic, sobre o conceito de padronização e conformação, qualidades que não cabem àqueles que pensam fora da caixa.
A guitarra surge com uma cadência que ajuda a criar na mente do ouvinte a onomatopeia que se fala quando se faz cócegas em alguém. Assumindo uma cadência lírica diferenciada em relação às demais músicas, Smith traz um tímido flerte com o rap enquanto começa a inserir o enredo verbal da canção. Interessante notar que, ao mesmo tempo em que ela sugere o cômico, a melodia traz uma curiosa sensação flutuante ao ouvinte que comunica bem com o senso de descuido e de uma ausência premeditadamente autoimposta. Sure Is Fun é uma canção que, com doses certeiras de sarcasmo, dialoga sobre a política do interesse, a negligência da integridade. É uma canção que mostra o desespero de um indivíduo que se vê em processo de ser corrompido pelo sistema e que busca avidamente por algo que pare tais engrenagens. Sure Is Fun fala ainda da desordem institucional e constitucional de maneira a mostrar que os ideais partidários são sempre guiados por mentiras ‘construtivas’ e um desleixo imensurável.
O piano surge promovendo uma melodia comovente, dramática e curiosamente motivadora. Contudo, já no primeiro verso lírico Smith vem com uma interpretação intimista e até mesmo com um sutil sofrimento na pronúncia de cada palavra. “I was diagnosed of a fear of getting too close” já mostra logo de início o contexto ao qual a canção se trata. A pandemia causou a insegurança biológica e o medo da aproximação, do contato e, consequentemente, o distanciamento cultural social para com atitudes de afeto como beijos e abraços. Com uma melodia melancólica, triste e minimalista calcada na união voz-piano, Daylight dialoga sobre solidão e a consequente aquisição de perfis psicológicos depressivos. Contudo, mesmo tendo os versos de ar compostos por uma introdução narrativa que ilustra um lado sombrio social deixado pela pandemia, conforme a canção vai evoluindo ela assume uma guinada motivacional tal como aquela impressão inicial obtida na introdução. Em verdade, Daylight de fato é uma canção que vista estimular o fortalecimento interno de cada indivíduo, de motivar a seguir em frente, de ter estímulos suficientes para vencer as barreiras pandêmicas. Acima de tudo, Daylight coloca a fé e a figura onipresente de um ser superior como um apoio, um porto seguro que mantém a estrutura emocional erguida e pronta para ver a luz do novo amanhecer. Tendo a presença do baixo trazendo corpo na estrutura do refrão e um coro inicialmente vocálico promovendo uma crescente na harmonia rítmica, Daylight é uma canção de emoção certeira e de lágrimas de uma nostálgica melancolia regida pela memória e pela incerteza do amanhã, mas um amanhã que será vivido com firmeza.
O som eletrônico beira um caos nascente. É então que a voz metálica feminina retorna com notícias não tão positivas para um viajante em específico ou, ainda, um conjunto de viajantes que relutam em seguir as regras preestabelecidas no tal Planeta Zero. A voz comunica que, se não houver mudança nos padrões de comportamento, essas mesmas pessoas serão encaminhadas a julgamento o que, segundo ela, pode levar a perda de status social, exclusão e eliminação. This Is A Warning é o interlúdio do ultimato cuja melodia dançante suaviza a seriedade da mensagem.
Com aspereza e um swing dormente, o misto de metal alternativo e hard rock retoma seu brilho em meio a uma melodia regada em distorções sujas. Curiosamente, a forma como Kerch desenhou as linhas de bateria possibilitou à canção obter uma base rítmica contagiante mesmo em meio a uma atmosfera impositiva. Isso faz de The Saints Of Violence And Innuendo uma aspirante a single com grande caráter radiofônico. Ainda assim, o Shinedown não deixa de inserir alfinetadas sociais no conteúdo lírico que, além de questionar o senso comum em metáforas sobre o conceito de comunidade, e, principalmente, o alvorecer de um mundo onde não há empatia. Com relação a este último, The Saints Of Violence And Innuendo parece fazer uma clara insinuação à falta de caráter interativo que emergiu a partir do isolamento pandêmico.
Assim como The Saints Of Violence And Innuendo teve uma base cativante, a presente faixa inova ao, já em seus primeiros sonares, mostrar um ritmo excitante a partir da linha de bateria. O som da distorção que surge como a luz do Sol em um amanhecer também auxilia na comunicação de algo excitante. “We’re gonna live to fight another day, live to fight another day”, entoa Smith ao introduzir uma melodia excitante na métrica 4x4 que, ainda, traz pinceladas de um drama melancólico. Tal impressão passa como uma rajada de vento ao nascimento do primeiro verso, um momento em que a sonoridade engata em aspereza, linearidade e um embrionário azedume. Army Of The Underpreciated é uma canção que fala da aniquilação, do cancelamento, do apagamento daqueles que ousam sair do padrão de comportamento do novo planeta. Em alguns momentos, existe até mesmo uma semelhança com o enredo de A Ilha, filme dirigido por Michael Bay, pois existem referências à identificação do indivíduo por números e uma ilusória redenção indicada pelo sistema.
A voz feminina retorna, entre os sonares eletrônicos, para informar que o indivíduo apontado durante toda a viagem não possui as qualidades necessárias para penetrar no novo planeta por mostrar pensamento individual e livre arbítrio. Delete, o último interlúdio de Planet Zero, é a confirmação da ordem da eliminação dessa pessoa, tida como um ser disfuncional.
A métrica curiosamente pop com que Smith desenha a cadência lírica traz uma pitada e audácia. Sons agudos e cuidadosamente posicionados pela programação acompanham o vocal em um instrumental de cunho intensamente minimalista. What You Wanted não apresenta enrolação. Seu enredo lírico traz decepção, a ausência de autoestima, falta de empatia e a constatação de que a viagem ao Planeta Zero atingiu seu objetivo de corromper a sociedade.
Um trabalho denso, conceitual, crítico, afiado, áspero, azedo. Um álbum com um enredo com começo, meio e fim. Um produto que narra o desenrolar de um indivíduo em atmosferas adversas de impunidade, autoritarismo e ditatorial. Planet Zero é a reflexão sobre a possibilidade de um lugar moldado para abrigar uma população hipnotizada pelas diretrizes de um sistema que rechaça a heterogeneidade.
Como já é o padrão do Shinedown, Planet Zero apresenta melodias densas, brutas e com uma mistura de metal alternativo e hard rock que soa madura e adorna harmonicamente todos os enredos líricos. Afinal, a melodia ajuda a intensificar o drama, a incredulidade, a indignação, a revolta e a potência de uma mente que não se vê com uma mente moldada de acordo com ideais de um sistema falido.
Tal como Attention Attention, a produção também recebe a assinatura de Bass, quem conseguiu sintetizar todo o caos, toda a desordem, todo o olhar pasmo e inquietante dos integrantes frente a realidades tão adversas e inimagináveis que o mundo está vivendo. Guerras, governos autoritários, retrocesso no que tange os direitos humanos, machismo estrutural, intolerância. Planet Zero é o grito de protesto mais visceral que já foi fecundado pelo quarteto de Jacksonville.
Interessante notar que, nesse processo, os sete interlúdios espalhados pela tracklist do álbum funcionam como introduções a respectivas sequências de músicas que abordam questões de pertencimento, aceitação, autoestima e imposição comportamental. A voz feminina passa até a parecer um personagem onipresente do disco.
Lançado em 01 de julho de 2022 via Atlantic Records, Planet Zero é um álbum conceitual que acompanha um personagem no processo de corrupção de sua essência. Um disco de críticas sociais brutais e afiados sobre uma sociedade refém do autoritarismo e do conservadorismo sistêmico. Bem-vindo ao Planeta Zero: a terra da padronização físico-ideológica.