Renato Medeiros - A Curva Dos Dias

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

No último trimestre do ano, Renato Medeiros decidiu alçar um voo importante em sua carreira com o lançamento de A Curva Dos Dias, seu álbum de estreia. Gravado majoritariamente na casa do músico, o disco de estúdio vem com a proposta de narrar os desdobramentos naturais da vida a partir das experiências que trazem.


Do nevoeiro, se desdobram notas de um bucólico entorpecente e hipnótico, enquanto a melodia em processo de construção já comunica uma vertente que tangencia uma dobradinha de roots rock e southern rock ao estilo Creedence Clearwater Revival com a melancolia transcendental de Imitation Of Life, single do R.E.M.. O curioso é que essa paisagem miscigenada vem com fluidez e maciez pela sinergia quase nauseante do baixo, guitarra e bateria de Lucas Gonçalves, ao passo que Livre vai se maturando um produto convidativamente soturno a partir do timbre agridoce de Renato Medeiros. Floral e com uma nostalgia reflexiva, Livre traz a relação do personagem com o luto do término de um relacionamento duradouro, que ainda tem de lidar com um estranho e desconfortável senso de liberdade que ainda não condiz com sua conformação emocional. O mais importante em Livre é a ausência de vergonha do protagonista em assumir ter medo do futuro perante a companhia da solidão.


Ela vem com uma alegria feliz e contagiante, uma contente novidade de A Curva Dos Dias. Com uma guitarra de riff mais aberto, o quesito do contágio passa a existir, na verdade, graças à levada amaciada da bateria. De essência levemente crua e estruturada sob uma base indie rock, Pássaro tem um solo bluesado misturado com toques hard rocks. Ainda assim, o que se sobressai é uma suavidade entorpecente em cuja paisagem traz um entardecer de verão com um céu repleto de revoadas de aves rumo ao sul. Trazendo a figura do pássaro como a representação da metáfora de esperança e guia, Pássaro apresenta um indivíduo embebido na insegurança do menosprezo de sua própria capacidade de superar o passado, enquanto tenta ouvir a voz da consciência indicando o rumo de um futuro que apenas ao protagonista pertence. Não à toa que Pássaro é uma obra que ressalta a busca por pertencimento.


Seu amanhecer é macio e morno. Um conforto tão aconchegante quanto estar debaixo das cobertas observando o céu de inverno pela janela do quarto. Conseguindo ser contagiante enquanto promove um aroma bucólico, a melodia vem como uma brisa carregada de um instigar de mudança comportamental. Uma mudança que, a partir do sonar do mellotron, vem acompanhada de uma acidez psicodélica capaz de, além de criar singela similaridade harmônica com aquela de É Preciso Saber Viver, single dos Titãs, lhe conferir um caráter curiosamente melancólico. Honesto traz Medeiros sob uma essência reflexivo-sonhadora que transpira, tal como a impressão de seu início, a mudança de comportamento que, agora, fica nítida em se tratar da relação com os sentimentos. O deixar de negar as emoções. A assumição do amor que pulsa do peito. Honesto é simplesmente a aceitação de que existe afeição por outro alguém e que, ao contrário de antes, não será permitido o esnobar da próxima chance de externizar essa emoção.


As notas suaves e doces do violão pairam pelo ambiente como brisas de um entardecer primaveresco espalhando o perfume das flores além-horizonte. Nesse instante, é interessante notar como o dueto conciso e embebido em introspecção de Medeiros e Gonçalves consegue recriar a energia visceral e suplicante do refrão de Vapor Barato, single de Waly Salomão e Jards Macalé. Minimalista e, portanto, estruturada majoritariamente somente entre vozes e violão, James possui grande semelhança com a energia melódica propagada em Dust In The Wind, single do Kansas. Delicada, James tem na inserção gentil do caxixi de Matheus Marques e Gonçalves o elemento a entregar uma textura educadamente mais racional à melodia, que ainda possui na guitarra de riff ecoante a construção de uma paisagem nostálgica de um tempo longínquo e que, ainda, soa como o vaivém entre o mundo racional e o imagético. É assim que James, com seu lirismo em inglês, traz a realidade miserável de um indivíduo que, perdido em seu próprio orgulho, precisa adquirir humildade para conseguir pedir perdão e assumir a necessidade de ajuda.


Seu início vem como um leve supetão. Carta Para Mim Mesmo é um interlúdio dramático que muito bebe da harmonia de We Are The Champions, single do Queen. Ainda que com rompantes explosivos por meio de sua mistura entre blues e sutilezas de metal alternativo vindas da construção das linhas de bateria, a faixa possui uma base indie rock que serve de cama tocante para um enredo em que o personagem assume a intensidade do ato de ser artista. Das emoções sempre exacerbadas, das texturas sempre mais salientes, das lágrimas sempre mais líquidas e fluidas. Carta Para Mim Mesmo não passa de um monólogo com o intuito de conformar e educar a mente do protagonista em entender que não há algo de errado em expor os sentimentos do coração em uma folha de papel sem endereço certo, mas em nome da arte.


A melodia é minimalista, doce e delicada. Graças ao violão de nylon de Gonçalves e Igor Bollos como único instrumento, a canção extravasa uma textura simples, mas não incapaz de transmitir emoção. Por mais que Perto traga um enredo ligeiramente fúnebre e trágico, o violão vem na função de suavizar a dor, enquanto Medeiros se usa da voz para lidar com o luto e para assumir um caráter de gratidão pela vida. Curioso aí é perceber que o violão também consegue exprimir a esperança e um brilho vivaz que transborda de Medeiros pela sua súbita vontade por intensidade.


Ácida e de requintes mistos de uma acidez nauseante, a melodia se apresenta de forma a criar uma ambiência fabulesca a partir da maneira como a guitarra se pronuncia. De baixo bem marcante, o sabor da faixa se torna embriagante pelo sonar do sintetizador de Medeiros e Dennis Guedes, mas o que deixa a sonoridade tocante é o violoncelo. Inserido por Giovanna Airoldi, o instrumento dá a Um Lugar um caráter dramático e levemente choroso, tal como aquele presente em O Astronauta De Mármore, single do Nenhum De Nós. Conseguindo transmitir um quê de épico, Um Lugar parece ser uma continuação direta de Perto, mas com uma energia generosamente mais sombria, pois traz uma visão levemente mais drástica em relação à morte.


Linear e embriagante em sua melodia indie rock com notas de um baixo bastante bojudo, a melodia acompanha Medeiros agora sob uma interpretação lírica mais ecoante e anasalada de forma a trazer memórias do canto de Rita Lee. Épica em sua crescente harmônica psicodélica-new wave, Vinheta Tóxica oferece um vislumbre no vício na dor. Ainda, a faixa traz a incapacidade do indivíduo em se sublimar, mostrando um severo conforto tanto na ausência de autovalorização quanto na insegurança, qualidades que podem estar incrustadas no inconsciente. Do tom usado por Medeiros, Vinheta Tóxica consiste em perguntas vazias que, imbuídas em torpor, não necessariamente querem ser respondidas por desejarem manter o marasmo falsamente reconfortante.


Alegre, a melodia, logo em seu amanhecer, traz grande familiaridade enérgico-estética com aquela de Lança Perfume, single de Rita Lee. Promovendo uma espécie de rock com essência nacional dos anos 80, Madre De Dios conta com um surpreendente e sorridente solo de guitarra e uma maior desenvoltura do baixo, que beira o progressivo. Assumindo ares metalizados que engrandecem sua harmonia e melodia, Madre De Dios ainda surpreende por trazer gritos swingadamente estridentes vindos do saxofone de Gabriel Stern, enquanto seu lirismo se matura como uma espécie do descobrimento do personagem em relação à fé. Uma prova da confiança naquilo que não pode ser visto, mas, sim, acreditado.


Macia, suave, delicada, nostálgica e melancólica. Com sua adorável sutileza, a melodia consegue envolver o ouvinte em seus braços, enquanto a ele oferece carinho e proteção. Criando familiaridades estéticas com aquelas de canções como Flower Power, faixa do Greta Van Fleet, e Resposta, single do Skank, Eu Vou Continuar traz requintes de decepção do personagem consigo mesmo. Se mostrando sem vida ou qualquer resquício de brilho, ele, porém, cria consciência de sua condição e puxa forças para buscar pela superação de uma dor enigmática do coração. Através da esperança de dias melhores, Eu Vou Continuar ainda é abraçada por uma acidez psicodélica vinda do hammond que coopera com a necessidade da fuga da zona de conforto da depressão. “Eu sei que a vida é boa!”, vocifera o personagem na inconsciente intenção de internalizar essa frase a ponto de conseguir mudar sua energia emocional.


É um trabalho delicado como diamante. Afinal, tal como essa pedra preciosa, sua fragilidade é tamanha que, a qualquer impacto, pode se despedaçar. A Curva Dos Dias surge como um álbum que apresenta um indivíduo em profundo processo de autoconhecimento e assimilação de suas emoções.


Caminhando do torpor do prazer até o lancinante sofrer da solidão, o álbum possui um aroma autobiográfico não tão claro, mas notável nas entrelinhas lírico-melódicas. Tratando da busca por pertencimento, da fuga da realidade de se sentir só, das doenças do coração e do sofrimento da alma, o álbum apresenta um corpo em seu processo de lapidação no mundo das emoções.


Por mais que, em alguns momentos, o personagem se apresente imerso em um profundo estado de depressão, A Curva Dos Dias, tal como seu nome sugere, mostra momentos de recobrar de consciência e força do protagonista. E são nesses períodos que ele se apoia na honesta aceitação da fé e na proclamação de uma espécie de mantra que auxilia seu espírito a mudar a energia e enxergar o mundo de outra maneira.


Desde o luto propriamente dito à relação com a morte, o personagem se mostra em constantes provações que confrontam seu eu mais frágil. Afinal, são esses momentos que pedem atitudes imponentes que podem definir se a pessoa tem senso de autoconfiança ou se mantém na marginalidade da força emocional. Eis então que o álbum apresenta não apenas um indivíduo instável, mas alguém amplamente inseguro e ausente de autovalorização.


Na ânsia de mostrar o caminho de mudança comportamental de seu personagem, A Curva Dos Dias tem no próprio Renato Medeiros a figura daquele capaz de transformar a emoção em melodia. Por meio de sua atividade na mixagem, Medeiros fez com que o álbum soasse múltiplo e com diversas texturas que caminham pelo indie rock, metal alternativo, progressivo, psicodelia, new wave, roots rock e southern rock como forma de ilustrar as indas e vindas da equalização emocional do protagonista.


Encerrando a parte técnica, vem a arte de capa. Assinada por Camilla Baratucci, a obra traz um cenário que muito lembra aquele capturado por Brian Cannon em The Masterplan, álbum do Oasis. Ela é hipnótica e traz uma noção de profundidade que muito encarna a estética renascentista, enquanto traz um senso de busca pela superação, ressignificação e, principalmente, uma espécie de redenção.


Lançado em 09 de novembro de 2023 de maneira independente, A Curva Dos Dias é a simples busca por autoconhecimento e pertencimento de um personagem que transborda sofrimento por não saber lidar e aceitar suas emoções. A conquista da gratidão e da capacidade da autovalorização são qualidades que podem mudar os eixos da vida do protagonista, se ele se permitir compreender seus sentimentos. Se ele se permitir entender que a vida é bela, mesmo que ao coração pareça o contrário.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.