NOTA DO CRÍTICO
Vendido como um material que reflete a evolução criativa de Lê Almeida, I Feel In The Sky, seu oitavo disco de estúdio, chega três anos depois, sucedendo Aulas, sétimo álbum do artista. Gravado entre as localidades do Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Nova Iorque, Seattle, Aalborg e Baixada Santista, o material tem o intuito de mostrar o impacto de diferentes lugares geográficos na construção criativa da música.
Uma valsa linear e redundante é pronunciada ao fundo de forma hipnótica e de base reconfortantemente gélida. Não é um disco ou um CD riscado, mas uma voz agridoce, abraçada por essa melodia magnética, pronuncia repetidas vezes em um padrão cíclico o nome do álbum. Não à toa que a faixa-título se apresenta como um prelúdio simples, mas embriagante em sua proposta ímã-entorpecente.
A guitarra de Lê Almeida vem ácida em sua movimentação amaciada. De sonoridade crua, ela, em união ao sonar cruento da bateria, sugere uma ambiência de garagem cujo baixo de João Casaes, mesmo sendo ofuscado densamente pelo sonar guitarrístico, consegue ser ouvido em seu corpo levemente bojudo e grave na base melódica. Fechando as linhas sonoras, vem uma voz de timbre adocicado e de pronúncia folgada que, vinda de Almeida, faz de Missão De Ouvir uma música soturna e entorpecida que coloca a capacidade de ouvir como um ato de escolha, um filtro sobre o que quer prestar atenção. É como a negação do suporte, do apoio e do acolhimento. O sofrimento assistido ao relento.
O sonar da afinação da guitarra vem com um efeito irresistivelmente hipnótico. Por mais que a sonoridade já esteja presente em uma crescente de volume no segundo plano, recorte em que é possível se ouvir até mesmo o sopro macio e sutilmente swingado do saxofone de Alexander Zhemchuzhnikov, o ouvinte ainda se percebe em uma espécie de transe inquebrável até que o baixo de Vicente Barroso e a bateria se encontram como protagonistas absolutos desenhando a base rítmica. O curioso é que, na presente canção, uma agudez no limiar da estridência se torna tanto a textura quanto a sonoridade mais marcante da melodia, que, trazida pelos sintetizadores de Casaes e John Di Lallo, oferece uma pronúncia soprante tal como se estivesse saindo de um clarinete. É com essa roupagem que Baile De Cinema é uma obra poética sobre a evolução do indivíduo desde seu nascimento ao seu amadurecimento.
Enquanto o sintetizador faz nascer um sonar de caráter aconchegante e esotérico, a bateria vem, no segundo plano, com uma levada crua e sutilmente swingada. Evoluindo para uma espécie de valsa fúnebre, Tafetá é uma faixa que, assim como a música-título, possui uma melodia cíclica em que a guitarra de Joab Régis coopera com a estética da acidez. Dessa forma, Tafetá se mostra uma obra sobre pressão e sobre a fragilidade da fé e da crença.
A bateria de Cacá Amaral vem como se estivesse em uma jam session, improvisando, mas sob uma essência levemente blues. Ao seu lado, o baixo de Bigú Medine e a guitarra vão construindo, juntos, uma melodia sinérgica e cíclica entre o grave e a sutil estridência. Com direito ainda a reprodução do som de metais proporcionados pelo sintetizador, Artes Cênicas é como a trilha sonora de uma peça teatral. Uma melodia que se enquadra desde o drama às cenas que antecedem ápices de ação. Artes Cênicas é, portanto, um interlúdio de natureza caótica em sua construção sonora majoritariamente assimétrica.
O compasso do caxixi de Ana Zumpano e David Beat entra em sintonia com o ritmo natural, quase indígena, promovido pela união das guitarras de Julio St. Cecília e Raphael Vaz. Abraçada pelo vocal agridoce de Otto Dardene, com sua pronúncia cerrada e em tom quase sussurrante, Bicho Solto é uma espécie de mantra que conta ainda com um solo de guitarra simples, mas estridente, e uma base lírica auxiliada pela participação de Alejandra Luciani com seu tom adocicadamente agudo. Bicho Solto, com essa iminente esfera naturalista densamente ampliada pelo chacoalhar do chocalho, é uma música que fala dos impulsos que o ser humano tem guardados em um armário nas profundezas do inconsciente. Tudo com um caráter narrativo generosamente fabulesco.
Depois do tilintar opaco das baquetas, o que se segue é uma melodia que, protagonizada por uma guitarra de interpretação macia, exala uma energia contagiante e profundamente melancólica. Lancinante e soturna, Clarões De Onça é um indie rock barroco que, enquanto dialoga sobre a rejeição e o julgamento como incentivadores do senso de insegurança e da ausência de autovalorização, reforça a interpretação lírica mole e folgada como uma assinatura do canto de Lê Almeida.
A base rítmica transpira o jazz, enquanto a interpretação de Almeida se mantém entorpecida, de pronúncia macia e folgada em seu dulçor sintético. Graças à levada desenhada pela bateria e ao sopro estridente do saxofone, o swing toma conta do ambiente, ainda que o ânimo transpirado pela melodia não seja suficiente para romper com a psicodelia embriagante. Linear e repetitiva, a sonoridade de Solitude, além de ter um sabor sci-fi pela participação do sintetizador, se embrenha em um lirismo que traz o romance como um fator criado e disseminado no mundo terreno. Uma profecia que deve ser seguida como a fé. É o sentir da paixão em um mundo de sonhos.
O despertar do novo ambiente segue a psicodelia de Solitude. Cheia de texturas embriagantes e, inclusive, alucinantes, Suíte Amoroso Afroponto se destaca por misturar o hipnótico e a acidez, sendo que, esta última, vem em peso a partir da crescente e surpreendente presença da guitarra de Henrique Diaz. Junto ao chacoalhar do caxixi, a canção consegue transpirar uma essência que beira o manguebeat. Forte, contagiante, indígena. Natural. Tão natural que supera aquela ambiência de Bicho Solto. Um longo, mas enérgico interlúdio.
A calmaria vem perigosamente sedutora. Abraçando o ouvinte tal como o rever de um ente querido há muito distante, a união do violão e do sonar do pau de chuva vindo do sintetizador traz uma generosa dose de frescor. Em Milhas E Milhas, a moleza na pronúncia de Almeida atinge seu ápice, deixando difícil para o ouvinte a compreensão do que está sendo cantado. Outro interlúdio psicodélico e embriagante, cujo enredo é profundamente saudosista.
Acelerada, groovada, épica e levemente dramática. A mistura de sonoridades revela angústia em meio ao primórdio do caos. A levada descompassada, desesperada e frenética da bateria de Amaral e Zozio consegue comunicar a agonia a partir do incitar proposital da dissonância, enquanto o sintetizador de Leandro Archela traz um dulçor ácido, estridente e sintético que insere, mesmo que por curtos momentos, ligeiras noções de new wave. De instrumental atordoante, Costas Quentes é uma canção em que Lê Almeida evidencia sua carência emocional e exorta grande necessidade de afeto e atenção, fazendo com que, consequentemente, o ouvinte enxergue sua essência solitária e ausente de carinho.
É um disco rico em texturas. Não há outra forma de descrever I Feel In The Sky se não uma dissecação da essência de Lê Almeida. Um homem poético, mas que se perde em seus pensamentos e acaba deixando escapar certas fraquezas emocionais guardadas nos confins do inconsciente.
Psicodélico, hipnótico, ácido e embriagante, o álbum é como o acesso à hipersensibilidade de Almeida. Uma sensibilidade que ama, que sofre, que pensa, que divaga, mas que também procura se compreender e se encontrar. O autoconhecimento e a aquisição de um senso de liberdade para poder sonhar e liberar uma identidade guardada por temer sofrer pela rejeição.
I Feel In The Sky é um monólogo em que o personagem principal busca entender seus impulsos, ao mesmo tempo em que necessita de amparo para conseguir respirar e enxergar quais pessoas são benéficas para serem mantidas no ciclo social. É o filtro do julgamento, da inveja, do orgulho e da má-fé.
Para fazer valer tais cenários de intensa introspecção, Almeida preferiu também se apossar da tarefa de mixagem para entregar uma alma mais palpável e honesta a I Feel In The Sky. Ainda que pareça existir uma falha proposital na equalização vocal, algo que cria uma noção ampla, profunda e embriagante de psicodelia, o álbum transpira o conceito de experimentação de texturas do post-rock, mas também se envereda entre o indie rock, o jazz, a new wave, o manguebeat, o sci-fi e a chamada neo-psicodelia.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Casaes, Beeau Gomez e Josimar Freire, ela consiste em uma obra aquarelada que deixa a imagem de Lê Almeida em evidência, enquanto o esfumaçar no plano de fundo simboliza as nuvens que, em tom avermelhado, sugere superação, mas também o acesso da esperança de um novo amanhecer,
Lançado em 06 de outubro de 2023 via Transfusão Noise Records, I Feel In The Sky é um monólogo psicodélico de um indivíduo sedento por afeto, consolo e autoconhecimento. É um material que, entre texturas sintéticas, ácidas e aveludadas, exortam a confusão do inconsciente de um personagem que quer, simplesmente, ser livre e ser quem realmente é.