NOTA DO CRÍTICO
Um ano de turbulências entorpecidas é 2021. As vacinas contra a Covid-19 são um alento global que tomam forma de morfina perante os acontecimentos acerca do Afeganistão devido à insurgência do Talibã e as modificações socioculturais que por ele estão sendo prometidas. É nesse cenário que nasce Desaforo – Volume I, o terceiro disco do power trio paulistano La Burca.
Notas lineares e de afinação alternativa fazem com que a guitarra crie no reflexo dos olhos do ouvinte uma paisagem que mistura insegurança e melancolia. A sonoridade, criada em âmbito minimalista calcado na união guitarra e bateria, cria uma sensação de maciez estranhamente desconfortável que é amplificada com a presença de um assobio zombeteiro. É como se a canção se encaixasse perfeitamente na trilha sonora da vida de personalidades como Christiane F., pois o instrumental criado oferece uma ambiência de desilusão, desesperança e desproteção. É uma narrativa sonora de uma sociedade machista, conservadora e negacionista. Eis Desaforo.
Um riff áspero, agressivo e de tom azedo insurge no ambiente com uma raiva que recria a era punk dos anos 70. Cru e sujo, a sonoridade criada em Ponto Morto relembra bandas como Ramones devido à base pop trazida pela levada 4x4 da bateria de Ed Paolow. Quando o vocal finalmente preenche a melodia, ele acaba sendo quase um som ambiente que, em vista do volume dos instrumentos, pouco se consegue interpretar das palavras ditas. Com seu timbre grave e de flertes guturais que se assemelham sutilmente ao tom de Pitty, Amanda Rocha transmite, a partir do lirismo que pode ser analisado, uma sensação aflitiva do eu-lírico por aparentar se sentir perdido e sem auxílio.
O amplificador está nas alturas. O som da guitarra introdutória se torna propositalmente ensurdecedor. Curiosamente, a cadência instaurada na introdução de Planeta remete à melodia criada no despertar de Breaking The Habit, single do Linkin Park. Este é o único momento em que a presente faixa encontra um elo com uma sonoridade mais comercial, afinal, as guitarras de Amanda e Daniel Guedes se unem em afinações graves e fazem a vez do baixo na criação de uma atmosfera post-punk por mais que ainda haja sujeira e distorção exacerbada. Ainda assim, o ritmo de Planeta é cativante e serve de cama para um lirismo que aborda a falta de pertencimento e a consequente solidão.
A bateria é quem puxa o instrumental. Por sinal, a forma como ela se apresenta muito remete à introdução de Blitzkrieg Bop, single dos Ramones. Ao mesmo tempo, não há flertes com o pop em Aldeia, afinal, as guitarras se apresentam distorcidas em tons ásperos que criam uma atmosfera de suspense que é enaltecida pelos efeitos de reverbe e a participação das notas graves do teclado de Saluc Bardo na coxia melódica, os quais criam uma espécie de caos. E esse caos acompanha um lirismo que, assim como em Desaforo, possui difícil audição, mas do que é possível digerir, existe uma nítida crítica ao descaso do governo Bolsonaro frente às comunidades indígenas brasileiras.
Pela afinação e sincronia das guitarras, até que Mato Sem Cachorro poderia incorporar o catálogo musical do Legião Urbana. Afinal, existe no som da faixa uma influência em relação à sonoridade do rock nacional oitentista, com uma mistura entre alternativo, indie e o punk. De linhas rítmicas e líricas repetitivas, a canção ainda guarda uma nítida influência de Paranoid, single do Black Sabbath, algo que é evidenciado pelos golpes secos e fortes da bateria na ponte entre o verso e o refrão. De todas as músicas até então executadas de Desaforo – Volume I, Mato Sem Cachorro é aquela que possui vocal mais audível, o que tornou possível a clara interpretação da letra, a qual, se utilizando de poucas palavras, deixa claro a mensagem pró-LGBT e suas ramificações. Afinal, esta é uma canção que enaltece o amor.
Dramático, o despertar de Poeira de Touro possui uma melodia intimista e melancólica que se emaranha por entre as bases do rock alternativo. É fato também que existem na somatória sonora toques de indie que tornam a faixa um blend de amenidade e sujeira entorpecida. Um instrumental que faz com que o ouvinte nutra dentro de si uma tristeza inebriante e estranhamente reconfortante.
A guitarra entra mais comportada. Sem distorção e com cadência macia, ela vai aveludando o ouvido do espectador conforme seus riffs vão se desenvolvendo. Como ventos ululantes que trazem brisas nostálgico-melancólicas, Amanda se pronuncia com cantarolares brandos que, assim como em Mato Sem Cachorro, são perfeitamente audíveis. Porém, mesmo assim, na presente faixa as palavras continuam sendo difíceis de serem interpretadas, pois a cantora, além de estar cantando em inglês, adota um tom interno que pouco extravasa o potencial vocal. Com uma melodia que transita entre o indie e o psicodélico, se percebe que Die Angels é uma canção morfinadamente sofrida e lamentosa.
O que se percebe após ouvir as sete faixas é que a proposta supera a realização em Desaforo – Volume I. Afinal, no que tange a melodia, ela é bem executada. Nota-se influências do punk setentista, da psicodelia, do indie e até mesmo do rock nacional oitentista. Além disso, as notas graves das guitarras em união ao compasso ameno em 4x4 da bateria fazem com que o disco se encaixe perfeitamente na variante post-punk.
No entanto, o disco não é feito apenas de instrumental. Majoritariamente, a mixagem realizada por Guilherme Vazzoler fez com que os vocais fossem engolidos pela sonoridade dos instrumentos. Pouco se compreende o que está sendo cantado, fazendo com que a voz de Amanda pareça mais um som ambiente do que o porta-voz de um cenário.
A pouca equalização fez com que, mesmo o teclado inserido na faixa Aldeia, que é percebido como um integrante onipresente, fosse mais facilmente identificado do que os vocais. Ainda assim, é inegável que, do pouco que pôde ser interpretado do lirismo, Desaforo – Volume I carrega um descontentamento perante o governo brasileiro atual, além de simpatizar e dar apoio às questões de gênero.
Como todo lançamento, é a capa que primeiro impacta o espectador, e no caso do trabalho da La Burca não é diferente. Feita entre Amanda, Azucena Rodrigues e Fernanda Robles, ela de fato choca. Trazendo o corpo de um pássaro com um coração no lugar da cabeça, a metáfora que se cria é no desejo de uma sociedade atue mais guiada pela emoção e empatia do que razão e ignorância. E nisso, o encarte acaba sendo outro ponto forte do disco.
Lançado em 20 de julho de 2021 via !punklorecords! em parceria com o Coletivo Lança, Desaforo – Volume I é um disco sujo como o punk e com letras fortes com apelo político-social. É o trabalho de um conjunto que possui potencial de crescimento, que diz o que deve ser dito e que, portanto, deixa claro ser um power trio que não leva desaforo para casa.