Jair Naves - Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 0.00 (0 Votos)

Apesar de a pandemia estar entrando em um eixo de normalidade, com a sociedade retomando suas atividades rotineiras, ainda existe um turbilhão de emoções a serem assimiladas após o período de confinamento. E foi justamente nesse período que Jair Naves engatou a produção de Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo, seu quarto disco de estúdio.


Uma melodia chorosa como as lágrimas profundamente sentimentais que escorrem por uma face cabisbaixa que dá voz ao lamento. Lenta e melancólica, ela funciona como uma valsa entre olhares entristecidos que se chocam na mesma dor. A dor da perda. E tal dor é banhada de um ódio incandescente, incontrolável e de origem quase enigmática. Como um devaneio poético, Meu Calabouço (Tão Precioso É O Novo Dia) dialoga com o vivenciar o presente da forma mais intensa, mas ao mesmo tempo discute a relativização da dor aos olhos de terceiros e a trajetória rumo ao perdão, um sentimento humanitário e puro, mas cuja sinceridade é difícil de ser alcançada em tempos de um luto sanguessuga. Não há malabarismos, apenas a honestidade lírica no que tange a visceralidade emocional exalada por um timbre levemente agudo carregado de um rancor estimulado pelas adversidades da vida. É com tal minimalismo melódico, mas de tamanha harmonia, que Jair Naves abre seu interior e começa a desabafar cada descontentamento cuidadosamente guardado em suas entranhas emocionais.


Não há lamento, mas uma seriedade e uma consciência racional latente que tenta ser amaciada com um veludo cuidadosamente flutuante vindo do riff da guitarra. Com uma energia dramática crescente, Todo O Meu Empenho consegue, curiosamente, alcançar a mesma intensidade existente em Breathe, single do Alter Bridge, em linhas melódicas que, apesar de semelhantes, são apresentadas de maneira brutalmente intimista. É assim que Naves opta para colocar à mesa questões importantes que tangem a impulsividade e a dificuldade de lidar com o próprio temperamento explosivo e inquietante. Tal relação é tão pessoal e profunda que Todo O Meu Empenho chega a amolecer o ouvinte com aquela que talvez seja a estrofe mais significativa do conteúdo lírico, pois extravasa o quão é difícil conviver com os próprios ímpetos impiedosos: “eu nunca aprendi a domar meu temperamento. De novo eu explodo e logo me arrependo”.


É como uma passagem interdimensional. Enquanto piano apresenta notas ondulantes e hipnóticas, o ouvinte vai se vendo imerso em um ambiente imagético e fantasioso. E nesse novo lugar, o drama, o caos e a instabilidade emocional se unem. Interessante notar que, aqui, é a bateria que desempenha grande parte do campo sensitivo melodramático. Com um rappeado R&B, De Arder evidencia o desconforto da realização que muitos conceitos não condizem com a realidade como a liberdade e direito à livre expressão. Mais do que isso. De Arder critica a televisão como objeto hipnótico social que prevalece as crenças e movimentos guiados por indivíduos que não merecem tal atenção. Nesse sentido, o recado é diretamente direcionado a Bolsonaro.


O violão adocicado e dramático-melancólico se mistura ao psicodélico veludo do mellotrom criando uma falsa sensação de conforto. A guitarra, que vem em seguida, funciona como raiares mornos de Sol em um entardecer de inverno amplificando o aconchego ilusório. Todo esse enigma ganha silhueta, boa, voz e verbo com a entrada racional, mas de evidente desapontamento, de Naves. Afinal, em Vai ele dialoga com a separação, com a dúvida se houve entrega excessiva onde não deveria ter. Ao mesmo tempo e indiretamente, tais devaneios conferem ao eu-lírico resquícios de uma insegurança que se tentou apagar na companhia de outro alguém como se ele fosse a estrutura a devolver a confiança. Por isso, dói a despedida e realizar que a verdade sempre esteve logo à frente, mas nunca vista com tamanha nitidez. E isso força o narrador a dar liberdade para uma pessoa que não mais estava ligada dizendo, simplesmente: “vai, pode ir. Eu aguento!”.


É como um toque de compaixão. Uma brisa reconfortante. Um horizonte resplandecente. Um desabafo suspirado. A maciez com que a guitarra baila na introdução é tão impactante e penetrante que o ouvinte se percebe em ambientes diversos, mas sempre banhado do conforto. Quando a bateria entra em cena empregando pressão, uma certa dramaticidade folclórica começa a ser construída como se fosse a introdução de um conto musicado. Até mesmo por esse motivo que Que Em Mim Se Encerre podem ser identificados traços da influência melódico estrutural do Greta Van Fleet. É nesse ínterim que o narrador invade o cenário rítmico e introduz um enredo que aborda diversas questões profundas do emocional do indivíduo. A começar por um senso de pertencimento e propósito, a canção exala indignação do eu-lírico perante o que ele encara como ludibriação religiosa. É como se, nesse ponto de vista, houvesse incredulidade em perceber o comportamento de má-fé, de maneira que, se se apoiar na religião, nenhum esforço precisa ser feito porque Cristo fornecerá a solução. Que Em Mim Se Encerre é sobre a vontade de renascer misturada com o desgosto frente os que defendem o papel religioso em tal processo. É sobre a vontade de tal maldição, como diz o próprio personagem, se encerrar nele próprio em uma visão esperançosa de purificação espiritual.


Enquanto que Que Em Mim Se Encerre é um extravasar descontente perante aqueles que pregam os conceitos religiosos, A Luz Que Só Você Irradia defende a força da imagem e da mensagem de Cristo como elemento de salvação do indivíduo contra os próprios devaneios sombrios. Em meio à introdução angelicalmente doce vindo dos sobressaltos do violão, Naves narra a trajetória nitidamente pessoal da fuga dos pensamentos negativistas, da gana em enxergar esperança. O simples ato de abrir as cortinas e deixar a brisa da manhã invadir o ambiente já é o começo para a reenergização da alma. E é assim que o próprio eu-lírico inicia sua jornada rumo ao olhar da possibilidade. Afinal, entre estrofes de intenso e puro sofrimento como: “de madrugada, tudo em suspenso, você já se assustou com seus próprios pensamentos?” e “porque eu acordei e não quis voltar a dormir para não desembocar de novo naquele sonho ruim”, o personagem dilacera o duelo entre o consciente e o inconsciente. A mudança e o marasmo, o presente e o futuro. 


Com dramaticidade melancólica, os dedilhares do piano dão a partida introdutória. Interessante notar que, na passagem para o primeiro verso, o ingrediente dramático se mantém, mas este é acompanhado de uma estranha doçura gélida que acompanha o narrador em seus devaneios sobre a dualidade dos ímpetos. O id, o ego e o superego. A razão, o desejo. A transformação do indivíduo nem sempre é para o bem e isso assusta, magoa, entristece. Ainda assim, a esperança na salvação, na redenção das almas que se perdem no caminho da maldade, se mantém viva e ativa. É sobre isso que trata Morre Um Apaziguador / Nasce Um Saqueador.


Uma harmonia impactante e tocante se pronuncia. A pausa e o silêncio, mesmo que de ínfimos instantes, são como sonoridades extras compondo a melodia da canção. Entre diversos sons ambientes que induzem à interpretação de fluidez, Vociferando cai sobre o raciocínio perante a necessidade do se sentir pertencente, amado, querido, importante. E para o eu-lírico, tal obrigação gera desconforto talvez pelo fato de adormecer a própria identidade ou simplesmente por ser socialmente preciso. A verdade é que o se encaixar nos moldes sociais oferecidos cansa e assusta.


Toques sombrios e melancólicos são inseridos calmamente na introdução a partir da dupla de guitarras que se dividem entre a limpeza do som e um amanhecer de distorção. Formada majoritariamente por texturas dramáticas e introspectivas, Irrompe (É Quase Um Milagre Que Você Esteja Aqui) é uma música que fala na solidão emaranhada pela busca de autoconhecimento, da própria origem. É fato que a canção, em alguns momentos, parece retratar a realidade vivida durante o isolamento na pandemia, aquela em que ver outra pessoa já basta para amornar os corações, mas Irrompe (É Quase Um Milagre Que Você Esteja Aqui) é mais do que o simples reencontro. É o encontro com a própria história.


Ventos sopram fazendo subir nuvens de poeira sobre um ambiente escurecido e inóspito. O som dos uivos das brisas gélidas são a única noção de saída, de vida, que tal cenário fornece. Com voz áspera e quase cinicamente demoníaca, Naves auxilia na criação de um incômodo e desconfortável ambiente regido pelo exalar da insegurança. A verdade é que, impaciente e incrédulo, o eu-lírico de O Dialeto parece tratar de assuntos diversos, mas o que salta na interpretação é um falso senso de contentamento frente ao sistema econômico. Contudo, esta é, sem dúvida, a canção de precisão interpretativa mais enigmática de Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo.


É uma história musicada cujo enredo prende o ouvinte do começo ao fim. A voz limpa e quase empostada do narrador às vezes sugere distanciamento lírico, às vezes uma rigidez consciente sobre a realidade apresentada. Dividido em duas importantes partes, Breu apresenta os pontos de vistas do cuidador e daquele que é cuidado. A vontade de construir normalidade versus o susto bruto da mudança. A antiga normalidade não mais existirá. Agora é se acostumar com o novo normal, com a realidade frente às limitações. Sob a ótica da perda da visão, Breu convida o ouvinte a descobrir e interagir com seus próprios medos e inseguranças na tentativa de humanizar o sofrimento e mostrar que todos têm fortes questões emocionais a serem trabalhadas.


Na forma de um suave rock alternativo flertando com o indie rock, Nasce Um Saqueador / Morre Um Apaziguador é a canção de melodia mais ousada, inovadora e devidamente rotulável de todo Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo. Como de praxe do álbum, esta é uma canção que, novamente, dialoga com o autoconhecimento, mas também com a transformação, o amadurecimento e a influência da sociedade na construção da essência do indivíduo. 


A doçura com que o violão baila no ambiente fornece a construção imagética de um cenário curiosamente exotérico e transcendental. Tendo nas notas amenas e flutuantes do instrumento a principal base melódica, Tão Precioso É O Novo Dia (Não Tem Mais Urgência Alguma) dialoga, entre leveza e drama, com o desejo, o instinto e o puro querer ao mesmo tempo em que traz a companhia de outra pessoa como importante fator para a equalização emocional. Pode ser, inclusive, que a canção tenha cunho religioso no sentido de trazer a fé como algo capaz de acalmar e promover sensações positivistas. É por isso que Tão Precioso É O Novo Dia (Não Tem Mais Urgência Alguma), mesmo que com uma considerável distância, fique ao lado de O Dialeto no time de canções cujo significado lírico é enigmático.


Dramático, intenso e profundo. Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo é um álbum inquestionavelmente minimalista que se apoia na estrutura intimista para dialogar com a essência e a emoção do indivíduo. Apesar de ter cada faixa composta por poucos elementos sonoros, o álbum exala uma grandiosidade em texturas que encanta e hipnotiza o ouvinte que acaba se perdendo em seu próprio processo de autoconhecimento.


É verdade que a palavra que define o álbum é drama, mas Jair Naves distribui, também, generosas doses de melancolia e nostalgia entre seus 13 capítulos líricos. Cada conteúdo, inclusive, pode ser considerado uma obra a parte da melodia, pois mesmo se não houvesse trilha sonora, os lirismos certamente se converteriam em poemas de cunho ultrarromatista devido às intensas lamúrias e sofrimentos que permeiam um teor autobiográfico que impacta o ouvinte em cada estrofe pronunciada. Uma boa estratégia, uma vez que Naves não possui exuberância vocal, mas, sim, uma enorme capacidade de compor obras inquietantes.


Falando sobre assuntos como autoconhecimento, solidão, depressão e religião, Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo convida o ouvinte a olhar o interior de si sob um ponto de vista sensível, honesto e sincero. Afinal, cada letra é como um estudo de si mesmo.


E nesse estudo existe uma trilha sonora difícil de categorizar. Em meio às suas linhas melódicas, existem momentos que o álbum soa MPB. Em outros, post-rock. Em outros, simplesmente música ambiente com enredo lírico. E em outros, uma mistura de rap, R&B, indie rock e rock alternativo. Toda essa gama foi sintetizada pela mixagem de Zeca Leme e unida em uma amplitude que entregou a Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo uma sonoridade única.


Fechando o escopo do álbum vem a arte de capa. Assinada por Renata De Bonis, ela representa a calma, a fúria e a frieza, ingredientes que compõem a essência do ser humano e que traduzem as dicotomias emocionais vivenciadas pelos personagens líricos do álbum. Entre os diferentes tons, a arte traz a dor, o caos e a heterogeneidade na tentativa de mostrar que, apesar de sermos compostos pelas mesmas emoções, está na dosagem de cada uma delas a originalidade de cada indivíduo.


Lançado em 20 de maio de 2022 de maneira independente, Ofuscante A Beleza Que Eu Vejo consiste em 13 poemas melodramáticos que ganharam trilhas sonoras cuja função é amplificar o cardápio de emoções que deles é emanado. Uma profunda viagem rumo ao autoconhecimento e consciência da própria identidade.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.