Isabella Bretz e Rodrigo Lana - Cabeça Fora D'Água

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Atravessando a fronteira entre dois anos, e quando poucos pensariam observar um lançamento musical, a parceria entre Isabella Bretz e Rodrigo Lana deu novas cores ao anoitecer de 2022. Intitulado Cabeça Fora D’Água, o material marca a terceira colaboração entre os músicos.


Ele vem doce como a brisa fresca do entardecer de verão. Porém, entre seus ingredientes, além da sensação de calmaria e leveza, vem toques melancólicos de outono que contrabalanceiam a maciez estonteante. Ainda assim é esse sentir de veludo que sobressai, faz com que os pelos se ericem e os olhos marejem em sintonia com a delicadeza melódica com que o violão de Alexandre da Mata, com o sintetizador de Rodrigo Lana, embriaga o ouvinte. As memórias acabam sendo revividas como em uma tela de cinema. Os momentos, sejam eles bons ou ruins, dividem o mesmo espaço nas recordações do ouvinte, que se emociona e ao mesmo tempo lamenta certos pedaços de seu passado. E assim, com essa MPB cristalina, uma voz leve e aguda entra em cena dando um dulçor diferenciado ao ambiente. É Isabella Bretz que, entre harmonias vocais com o timbre igualmente singelo de Markéta Irglová, dialoga sobre lamentações e um chamado enigmático que rompe a barreira da zona de conforto da tristeza e devolve a vulnerabilidade como resposta à imprevisibilidade da vida. O vento, a água. Elementos que juntos moldam a literatura do incerto. Elementos que amedrontam justamente por não darem certeza, receita ou roteiro sobre o que pode acontecer, mas ao mesmo tempo são aqueles artifícios que dão luz à vida. E Respiro é simplesmente a canção que representa o desapego à rigidez do planejado e a rendição ao destino. Um brinde ao incerto. Um brinde à vida.


Explosões florais e enérgicas como uma trilha sonora a uma animação princeseiresca da Disney. Curiosamente, em meio a essa energia resplandecedora e entusiasmante, um aroma enigmático e dramático também são notados a partir tanto das notas do piano de Lana quanto da interpretação lírica de Isabella, a qual vem com uma postura que mistura cautela e surpresa. Agora introduzindo singelamente a guitarra no escopo harmônico, da Mata dá peso a essa sensação de misticidade e enigma que exalam de Bifurcação, outra canção que parece não apenas dialogar com o tempo, mas também diretamente com o destino. Contudo, na embriaguez do diálogo sobre a velocidade do relógio e as chances que são perdidas no meio do caminho, a faixa parece ter um foco, de maneira metafórica, à conquista do atributo emocional da felicidade. Não parece, mas se não cultivada e bem tratada, ela pode dar as mãos ao tempo e, assim como ele, andar a passos largos e se perder da vista daquele que um dia a conheceu. E Bifurcação é, literalmente, a narrativa do trecho em que a alegria encontrou um caminho diferente de seu par humanizado.


Uma tristeza estarnhamente entorpecente é percebida em meio ao veludo do piano e a forma doce com que Isabella vai introduzindo um lirismo que, em primeiro momento, parece representar retorno ou algum tipo de perdão. Lindamente, a canção acaba se transformando subitamente quando se percebe que Pedido é simplesmente um retrato do diálogo maternalmente reconfortante. O cuidado, o carinho e o aconchego são sentidos pelas esquinas sonoras mais simples que, com ajuda das palavras proferidas, são materializadas mentalmente fazendo com que o ouvinte se sinta em um abraço apertado ou em um momento de extrema simplicidade, mas que emocionalmente represente algo além das palavras. Quando o violoncelo de Vanice Peixoto entra em cena, a dramaticidade atinge seu ápice e o ouvinte tem a certeza de que Pedido mostra um amor incondicional entre duas pessoas, mas que, uma dessas partes, com seu caráter de cuidado materno, tem como vontade impulsionar o outro. Pedido é a sononorização do término de um relacionamento. Da dor de um e da força do outro. Da vontade pela amizade ante o romance. Uma música que,entre o dulçor do violão de Lucas Telles, se vê no drama, na intensidade e no desespero que o violoncelo oferece ao representar a instabilidade emocional daquele mais afetado.


Um sonar que remete à natureza e o indígena surge através do sintetizador. Com uma cadência rítmica contagiante, linear e com repentes ásperas vindas da guitarra que rompem com tal mesmice melódica, Quem Foi? é uma canção que, como o próprio nome sugere, é questionadora. Questionadora do destino, questionadora dos costumes, questionadora da xenofobia, burocracia. Quem foi? é uma pergunta forte, mas feita com delicadeza por alguém que, por meio de insatisfações poéticas e rimas, busca respostas às suas inquietações. 


O veludo do fender rhodes é ouvido como primeiro sonar. É ele quem puxa um swing interessante que cativa o ouvinte durante a melodia introdutória que, logo que amadurece, se mostra a mais completa de Cabeça Fora D’Água. Tendo na bateria de Léo Pires o elemento que constrói o ritmo bem marcado da composição, ela tem também no baixo de Pablo Maia o corpo e a base da melodia. Misturando elementos do progressivo, da MPB e da psicodelia, 30 De Fevereiro é uma canção que, graças ao trompete de Kezo Nogeira, é repleta de swing, energia e uma excitação embriagante percebida de maneira latente a partir de sua segunda metade. É nela que, inclusive, uma voz de timbre levemente fanha e leve dá outro tom à narrativa. Eis Renato Enoch que se une à Isabella nesta que é uma faixa com cheiro, cara e silhueta de single. Um single que fala sobre intensidade, sobre vida, mas também sobre não se encaixar nos padrões sociais e se sentir leve e verdadeiro com tal constatação. Como uma brincadeira cômica, 30 De Fevereiro surge como a mesma promessa infame de começar o regime na segunda-feira. Se encaixar naquele perfil moralista e conservador não é um desejo da personagem lírica, definitivamente.


Assim como foi em Respiro, a presente faixa é pautada por uma harmonia vocal grandiosa entre os timbres de Isabella e agora de Katerina L’Dokova. São elas que dão o corpo e uma sensação de sensualidade enigmática e levemente inquietante a Sentido, uma canção que, com auxílio do violão, ganha ares árabes MPBs que cativam o ouvinte e o convidam a acompanhar o lirismo de Sentido. Como uma canção que discute o auto-anonimato em meio à cegueira da rotina, Sentido é como a busca do personagem lírico em, de fato, se sentir. Sentir o toque, a respiração. O coração batendo. A vida. é uma canção que busca instigar o viver o presente de maneira a se sentir pertencente do momento e perceber cada experiência, seja ela sensorial ou não, que ele proporciona.


É como a lágrima. A dor, a angústia. O sofrer. O uivo do violoncelo representa a ardência do sofrimento como um pedido de socorro ecoando pelas paredes rochosas até encontrar uma fenda de luz. Ao sonar linear e ondulante das notas do piano, a dramaticidade encpontra a seu lugar de fala enquanto Isabella, entre sobreposições vocais que encarnam um torpor espiritual quase como um personagem onipresente, dialoga sobre legado, sobre fardo, sobre o peso do passado. Sobre amadurecimento. E esse amadurecimento é a tomada de consciência de que o indivíduo não precisa levar o mesmo sofrimento que seus ancestrais pelo simples fato de terem pertencido a uma mesma família. É assim que Cicatriz se mostra como o rompimento desse fardo hereditário de dor, sofrimento, mas também um fardo que pode representar preconceito, intolerância e outras impressões sociais maliciosas. O ser é independente de seu passado e o legado do passado é ele que vai destruir enquanto desenha os contornos de uma nova herança socio-comportamental.


A guitarra junto ao veludo do fender rhodes cria uma atmosfera de uma maciez embriagante. É reconfortante, mas ao mesmo tempo lacrimal a forma como os instrumentos criam sua sinergia melódica. Com uma atmosfera introspectiva e intimista, Isabella introduz um lirismo no idioma inglês em um tom mais artístico que dialoga, assim como em Pedido, sobre o rompimento de uma relação. Oxytocin, sendo o hormônio do amor, fala, como o próprio nome sugere, sobre amor e sobre o não sentir medo. É uma canção que deseja o melhor para o outro, que o caminho do amadurecimento por ele seja trilhado e que o amor pelo passado vivido em conjunto sobreviva como boas memórias de dias de encantos.


É como um abraço. Um aconchego. Uma proteção contra as lágrimas e a dor. Um escudo protetor do medo. O piano com sobreposições vocais cria uma harmonia translúcida que encanta pela simplicidade melódica, mas que penetra com sua dramaticidade embrionária. Pra Te Ninar é um mantra maternal que encarna o amor incondicional e indestrutível de uma mãe com seu filho. O desejo pela felicidade, sucesso e, principalmente, afeto, fazem da faixa a tradução do recomeço, do desprendimento da culpa, das responsabilidades e da rigidez. Pra Te Ninar é simplesmente o som da energia do novo amanhecer.


Se Pra Te Ninar sonorizava um novo amanhecer, a presente faixa é como o cintilar das cortinas valsando na dança dos ventos desse tal novo amanhecer. Pelos dedilhares levemente acelerados do violão, é possível sentir a fresta de luz invadindo o quarto e rompendo gradativamente a penumbra causada pela noite. Curioso notar que, aqui, o violoncelo não traz drama ou menções ao sofrimento. Aqui ele vem como um elemento a impulsionar o senso de esperança, de segunda chance. Tudo sob uma ótica emocionadamente lacrimal. Por meio dos sobrevoos vocalicos mântricos e dos dedilhares graves do piano, a faixa-título vem como uma força resplandecente que vem de dentro para fora irradiando vida, ânsia pelo fazer e, principalmente, a sensação de pertencimento. Quase como um interlúdio calmante e reenergizante. Uma ótima maneira de reforçar toda a mensagem do álbum.


Não é apenas o fato de ter sido gravado entre Brasil, Portugal e Islândia que Cabeça Fora D’Água é um álbum grande. Ele é imponente pela experimentação de novas texturas que criam uma nova sonoridade à MPB. É um produto capaz de misturar dramaturgia com relaxamento, questionamento com insaciedade, dor e renascimento.


Cabeça Fora D’Água tem um diálogo quase linear que traz o anseio da personagem lírica pela vida. Enquanto isso, porém, ela não esconde sua insatisfação e, por vezes, até temor pelo tempo, pela água ou tudo aquilo que inspire imprevisibilidade. A incerteza da vida é o ingrediente pelo qual faz o mundo girar e o destino conseguir seu papel de realizar cruzamentos de histórias capazes de enriquecer ambas as vivências.


E é simplesmente neste ponto em que a personagem lírica do álbum se encontra: no amadurecimento , um momento que a faz perceber a importância do ser vulnerável para a vida poder fazer sua tarefa. Nesse percurso, o amor, a dor, o sofrimento, o autoconhecimento e a necessidade de pertencimento estarão lado a lado construindo a personalidade desse eu-lírico.


Para dar peso a tal narrativa, a dupla Isabella e Lana uniu suas sensibilidades para fazer com que o post-rock, aqui mencionado por conta da experimentação de texturas, se fundisse com a MPB, o progressivo e até mesmo o psicodélico, na construção de ambiências que traduzissem todas as emoções exaladas em cada canção.


Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Enoch, ela traz um busto de manequim usado em cursos de moda que se posiciona naufragado. Apenas com parte da cabeça imersa, ele vem com vários desenhos que simbolizam cada um dos fatores abordados nos capítulos do álbum. Em suma, o fato de estar com a cabeça fora da água é uma menção clara da vontade de recomeçar. Do refrescar a mente e, principalmente, da força do destino agindo sobre a vida da personagem. 


Lançado em 16 de dezembro de 2022 de maneira independente, Cabeça Fora D’Água é um disco que dialoga sobre a relação com o tempo. A construção da identidade associada à sensação de pertencimento, à vivência do amadurecimento e à relação com o passado é outro fator que engrandece e deixa levemente mais complexo o diálogo proposto no álbum.

















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1 Comentários

Que resenha maravilhosa! Deixo os meus parabéns à Isabella Bretz, ao Rodrigo Lana e a todos que participaram desta linda obra. Quero também parabenizar ao Diego pela beleza de alma que possui, pela sensibilidade e generosidade ao fazer a análise deste trabalho. Obrigada Diego, por me fazer orgulhar a cada dia mais, dessa dupla que eu amo tanto.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.