NOTA DO CRÍTICO
Com cinco anos de idade e experiência de vida no que tange conflitos político-econômicos e crises biológicas, o Hate Moss rompe o jejum de produção e enfim anuncia seu segundo capítulo discográfico. Intitulado NaN, o trabalho é o sucessor do disco de estreia Live Twothousandhatein.
Apesar de frio e do chão estar forrado por uma grossa camada de neve, o suor escorre sem controle enquanto corre desgovernadamente movido por um desespero desmedido. A cada olhada para trás, um temor. Ao redor não há civilização ou ninguém para socorrer. Apenas árvores completamente nuas e inanimadas. Esse cenário de perseguição e suspense é construído com facilidade através dos sons agudos e estridentes do sample de Tina. Eis que, de maneira singela, um duo agridoce surge na superfície melódica. Com protagonismo do suave gélido do timbre de Tina, a camada lírica começa a ser desenhada acompanhada de uma cama azeda e levemente áspera vinda do vocal de Ian na linha lírica secundária. De melodia nauseante e ondulante, Neve vai ganhando texturas mais palpáveis conforme a bateria vai inserindo certa crocância e solidez em meio ao entorpecido líquido adocicado da sonoridade eletrônica. Dialogando sobre as diferentes personalidades que um mesmo indivíduo pode assumir a depender das circunstâncias, Neve também trata dos impulsos descontrolados e exala uma honesta dúvida do eu-lírico de como extravasar os desejos e como lidar com os sonhos que, nem sempre, podem ser concretizados.
Já é noite na floresta temperada. Não há sinal de vida ao redor, mas a forma como o vento baila entre os troncos de árvores nuas forma uma sinfonia uivante que causa certa insegurança. Eis que, de um horizonte não muito distante, se ouve uma voz radiofônica balbuciar palavras de difícil compreensão, mas pelo fato de ser acompanhada de uma percussão que beira uma melodia tribal, sugere o início de um ritual. Conforme o personagem vai cuidadosamente se arrastando para próximo da fonte de tal som, ele observa uma figura feminina se elevando do solo e sendo rodeada por feixes de luz de diversas cores. Diante dessa cena quase imagética e de beleza sobrenatural, o ouvinte se percebe embalado por uma cadência relativamente semelhante àquela do pancadão carioca enquanto o conteúdo lírico começa a ser destrinchado. Mais sério e crítico que aquele da canção anterior, em Pensar existe uma ferrenha crítica ao comportamento personalista, à cultura capitalista e ao conceito de meritocracia. Com participação de Isis Broken, Pensar também dialoga sobre corrupção e analisa constantemente a cultura de classes que ainda regem as sociedades ocidentais. De refrão desenhado em uma melodia chiclete, Pensar, sob uma sonoridade majoritariamente ácida, convida o ouvinte a questionar os valores, a construir dúvidas pertinentes sobre o tabu do conceito de normalidade e, principalmente, a refletir sobre o autoritarismo e discutir sobre a censura daqueles cujos direitos são relegados pelo sistema.
A aurora boreal apresenta sua sinfonia de cores frias na atmosfera. Ao fundo, tal beleza natural é agraciada pelos primeiros raiares de Sol que começam a iluminar o solo gelado. Tal cenário é proporcionado por uma melodia transcendental que serve de boas vidas a um lirismo calcado no idioma italiano. Ao contrário das canções anteriores, quem se sobressai nas linhas vocais é Ian e seu timbre suavemente grave. De melodia ondulante e linear, Dei Buoni Dei possui um solo que entrega dramaticidade embebida de uma grandeza de tensão. De lirismo enigmático, a faixa possui um enredo fabulesco e literário em que cada ouvinte pode retirar diferentes significados. Em um primeiro momento, Dei Buoni Dei parece dialogar sobre amadurecimento, insegurança e a fluidez da vida. Ao mesmo tempo, assim como o autor Wolfgang Von Goethe romanceou o suicídio em Os Sofrimentos do Jovem Werther, em Dei Buoni Dei e ao lado de God Of The Basement, o Hate Moss parece romancear a morte.
Existe certo torpor amaciado naufragado em uma melancolia curiosamente contagiante. Como as cortinas balançando em sintonia da valsa do vento, a melodia vem como uma companhia onipresente, impressão amplificada através da forma como as vozes se posicionam frente à conjuntura sonora. Com uma insegurança linear, o contexto melódico de Eremita, que mistura dramaticidade e racionalidade através do corpo grave do som do baixo, serve de cama para outro enredo narrado em italiano e de maneira a se apresentar como um folclore recheado de uma suave tensão. Aqui, a narrativa parece abordar a falsidade e, entre entrelinhas, trazer o excesso de inteligência como sinônimo de esnobe. É desse preceito que o eu-lírico, inclusive, procura se distanciar.
É noite. As casas ao redor estão escuras. Seus habitantes, dormindo em um sono profundo. Nas ruas, porém, está alguém em processo de fuga. A passos curtos para não fazer barulho, o personagem caminha com máxima cautela para não chamar a atenção. Os limites da cidade não estão longe, mas a insegurança e a tensão parecem fazer a distância aumentar significativamente. Apenas com os olhos nus, o indivíduo, envolto em suor pela adrenalina, luta para se desvencilhar de algo enigmático. É como se estivesse saindo de um cativeiro. Afinal, quando alcança a mata, seu instinto é o simples ato de correr sem nem ao menos tomar o devido fôlego ou olhar para trás. Com uma tensão mais forte e propriamente tenebrosa que a das demais canções, Birdaha traz uma roupagem melódica imagética que flerta com a estética doom de maneira a trazer uma suculenta corpulência que, por vezes, irrompe na melodia de ingredientes minimalistas. Uma voz é então ouvida ao fundo como se fosse um eco refletido por entre as paredes de uma catedral gótica. O ressoar levemente gutural desemboca em um princípio de caos melódico que, guiado pelo tilintar agudo do triângulo e da percussão acentuada, evidencia o lirismo. Birdaha de fato narra, tanto melódica como liricamente, um processo de fuga. Fuga da impunidade, da intolerância, do julgamento alheio. E é exatamente essa fuga que traz força para manter a essência viva no interior de cada indivíduo. O ser quem se é, independente das circunstâncias e adversidades, é a principal mensagem de Birdaha. É como uma ode à autenticidade, honestidade e sinceridade para consigo mesmo.
O ambiente é pequeno. Mas dele se veem varias luzes de diversas cores e tons em uma sincronia agitada e hipnotizante. Quem dentro dele está parece não ter escapatória a não ser se misturar à energia que é emanada. Curiosamente, o som áspero de guitarra que sai do sample cria uma interessante ambiência que flerta com os princípios do nu metal. E no momento que o lirismo se evidencia uma constatação interessante é obtida. Não pelo ritmo, não pela melodia e menos ainda pelo idioma, mas a conjuntura dos dois primeiros versos recria a atmosfera contestadora e temática de Máscara, single de Pitty. Sob a estrutura da new wave, Fog acaba apresentando semelhanças com a mensagem da música da cantora soteropolitana, afinal, ambas exaltam a assumição da própria identidade. Contudo, Fog traz o adendo da fé no sentido de que a figura onipresente é quem governa as ações dos indivíduos terrenos, além de tangenciar com questões de origem e pertencimento.
O horizonte é límpido e vai sendo a base para um quadro das belas cores do alvorecer do novo dia. A luz da manhã, a brisa da vida. O frescor. A renovação. A melodia introdutória, mesmo que simplista, tem um forte quê motivacional. Ao fundo, uma voz surge como um ser onipresente repetindo frases em inglês de cunho penetrante que ecoam na mente do ouvinte como um dever a ser feito. Sob uma textura transcendental e flutuante, Peonia é, de fato, uma canção de cunho estimulante e propriamente motivacional naufragada em um torpor curiosamente melancólico. Não é apenas uma canção sobre perseverança e insistência. Peonia é uma canção de persistência, foco e cuja principal mensagem é não deixar o sonho, o desejo, o ideal morrer.
Depois de um intervalo de três faixas, Ian novamente retoma presença lírica. E aqui, mais do que presença, vem seu protagonismo. Seu tom levemente grave oferece uma textura mais palpável e sensitiva a uma atmosfera que vai se evidenciando sob roupagem synth-pop. Ao lado de Carolina Zac, o duo Hate Moss cria, em Stupid Song, uma atmosfera que mistura chip tune e techno enquanto dialoga sobre cumplicidade como uma maneira de enaltecer o conceito social de igualdade.
Cheio de texturas, sensitivo e reflexivo. NaN não é apenas um trabalho social, é uma experimentação. Experimentação de sons que formam cenografias completas na mente do ouvinte. Experimentação que estimula a imaginação, a emoção e a sensibilidade do espectador. Transitando entre o italiano o português e o inglês, o Hate Moss faz do álbum um produto de teor flutuante e transcendental.
Difícil não colocar o Hate Moss no mesmo terreno que duplas como The White Stripes, The Black Keys ou mesmo The Black Crowes. Ambos os nomes surgiram como ou se mantiveram como duos influentes na indústria da música produzindo notáveis e marcantes hits que simbolizaram uma geração. De Seven Nation Army a Lonely Boy e Twice As Hard, o time de músicas emblemáticas de duplas agora cresce com nomes como Dei Buoni Dei e Birdaha.
Claro que o álbum em si segue o mesmo conceito de ser um trabalho socio-analítico de cunho reflexivo e até mesmo motivacional, mas tais faixas se posicionam como verdadeiros cartões de visita de NaN. O mais interessante nesse quesito é notar como com apenas duas pessoas é possível construir um amplo campo melódico que permita ao ouvinte acessar o campo imagético-sensorial de maneira a construir imagens, sensações e sabores.
E essa liberdade só foi possível a partir da autoprodução. Com capacidade comprovada, o Hate Moss aceitou o desafio de se autoproduzir e automixar, o que o rendeu mais autenticidade e originalidade, além de uma ampla liberdade criativa que resultou em um disco sensorialmente sem limites definidos.
Chegando ao aspecto visual de NaN, o ouvinte se depara com uma enigmática arte de capa. Assinada por Ian, ela se apresenta inicialmente com uma arte desforme, quase como um quadro da escola abstrata. Mas em sua essência é possível enxergar formas que foram propositalmente deformadas para passar o conceito da heterogeneidade e falta de perfeição com que a vida é regida. É como a vida humana em sua essência instável.
Lançado em 20 de maio de 2022 via Stock-a Productions, Before Sunrise Records e Rock City Agencia, NaN é um trabalho que reflete sobre a forma como a humanidade lida com a vida ao passo que oferece ao ouvinte um campo sensorial e imagético sem limites para a experimentação sensitivo-palatável.