NOTA DO CRÍTICO
Brasil, terra do samba, da MPB, da bossa nova, do axé. Mesmo em um país em que o predominante é a família de ritmos calcados no swing, existem também aqueles inclinados a uma ambiência mais sombria e agressiva. Nessa linha está o death metal, filho pródigo do heavy metal que conquistou o Hammathaz, quinteto sorocabano que se lançou no mercado com The One, seu álbum de estreia.
A guitarra em união com a bateria são os elementos que dão as boas-vindas ao ouvinte. Com instrumental calcado em uma bateria cujo groove cuja batida transita por entre os universos do punk e do heavy metal e uma guitarra distorcida, de riff ecoante, mas afinação agridoce, pouco se vê do peso característico do death metal. Porem, conforme a introdução vai evoluindo, mais Farewell vai sendo desmascarada. De repente, onde antes ainda se podia ver feixes de luz por entre as rochas, agora é só avalanche e poeira. Pedais duplos insistentes e agressivos como explosões ininterruptas, riffs sombrios como a noite e ariscos como serpentes. É assim que, enfim a faixa acessa o primeiro verso e apresenta Thiago Pasqualini com seu vocal gritantemente rasgado e tom que transita entre timbres gravemente opacos e guturais, mas todos unidos pela métrica do screamo.
Apesar de ainda trazer afinação baixa, as guitarras de Thales Stat e Rodrigo Marietto se comportam de uma maneira a buscar redenção. Uma redenção que nunca chega graças às linhas brutas em blast beat da bateria de Lucas Santos. Porém, o que se vê melodicamente em Devil on My Shoulder é uma sonoridade que busca pela ascensão, busca ajuda. Afinal, por mais que ela ainda soe agressiva, ela adentra momentaneamente na roupagem thrash e flerta com o metal. Essa conjuntura faz surgir, quando retomada a consciência, uma atmosfera mais aberta e pronta para algo harmônico.
É interessante como, de uma forma ou de outra, a essência do heavy metal se pronuncia de maneira tão latente na sonoridade do Hammathaz. Apesar de grave e amplamente distorcido, o riff uníssono das guitarras traz uma cadência que é muito característica do subgênero. Em contrapartida, parece que cada vez mais as linhas da bateria vão imergindo em um local onde tons vermelhos e pretos dominam. A agressão e o sinistro. A raiva e a vingança não anunciada. Curiosamente, embora a bateria se pronuncie acelerada tal como o death metal e seu irmão mais velho, o thrash metal, pedem, o andamento da guitarra é lento e sujo tal como o doom metal prevê. From the Grave é a perfeita junção da noite crepuscular com o submundo trevoso.
É como se o perigo tivesse sido anunciado. Chegando aos poucos, rastejando por entre o mato seco, ele observa. Na espreita. Por mais que o riff de guitarra engane, o peso, a agressão e o tom baixo sempre serão ingredientes incluídos nessa receita que é The One. New Blood, porem, acontece algo intrigante. A sonoridade segue com base no death, mas a forma como a melodia evolui e o vocal se pronuncia leva a melodia para o espectro mais bruto do nu metal, tal como faz o Slipknot em suas composições.
Os golpes da bateria soam como tiros sincopados de metralhadora. O riff da guitarra, aqui, submergiu das trevas, mas ainda carrega, incrustado em suas entranhas, uma aspereza insolúvel. Na introdução de Bringing Hell, a comunicação estabelecida entre Stat e Marietto cria uma perfeita roupagem thrash, áspera e acelerada. Mas quando o primeiro verso se inicia, fica difícil fugir da delimitação territorial do death metal. Se dividindo entre momentos de aceleração descontrolada que, não fosse a agressão extrema e a distorção amplamente grave, seria uma perfeita expoente do speed metal, e momentos em que o groove adota uma métrica audivelmente mais acessível, a faixa é o caos sonorizado.
Pela primeira vez até o momento, o baixo de Anderson Andrade coopera de maneira indiscutível no peso da canção. Assumindo a posição de um realçador de sabor, o instrumento faz com que, a partir do seu groove grave, a introdução de Self-Chained caminhe por cenários unicamente metalizados e convide o ouvinte a instaurar a roda Mosh. Antes do turning point melódico narrativo, os músicos pronunciam frases típicas do thrash metal para, então, dar passagem para uma sonoridade que transita por um hardcore excessivamente acelerado, metalcore e pelo progressivo-psicodélico inserido de maneira rápida como um sopro pelo solo da guitarra. Por essas razões, Self-Chained é uma forte candidata para single de The One.
Groove sincopado, quebrado. Santos se mostra, aqui, de maneira inovadora. As linhas por ele montadas na introdução mostram uma cadência diferenciada. Estimulante e estranhamente limpa. Segundos mais tarde, porém, o solo de bateria recebe o trio de cordas em um uníssono grave e rude, mas cuja brutalidade recebe influência do superego, pois parece controlar seus ímpetos raivosos e ásperos. No entanto, o id, o desejo e a explosão romperam a barreira do controle. Daquele som pesado tal como o heavy metal pede, o caos se instaura e, enfim, o death metal retoma seu posto ainda na segunda parte da introdução de Tear the Walls. Golpes sequenciais do bumbo, distorção áspera em tons graves e vocal amplamente rasgado com toques guturais moldam a estrutura melódica da faixa.
Apesar de parecer ver um raiar de luz em meio à poeira da destruição, cenário trazido por uma linha bastante melódica da guitarra, o caos tão comum na sonoridade do Hammathaz e bem empregada em The One assume a dianteira. Mesmo assim, curiosamente, esse caos faz com que o ouvinte consiga digerir as nuances instrumentais de Irrational Beings. Afinal, o quesito bruto não se torna sinônimo de barulho. O bruto aqui é imerso naquilo que pode ser tido como um mínimo de clareza, tal como um viajante seguindo por uma trilha extremamente escondida pela folhagem densa. E nesse aspecto, muito se vê do metal na estrutura rítmica que molda os alicerces da faixa. Afinal, a sonoridade construída no pré-refrão e no próprio refrão é estimulante, mas com um peso digerível que faz com que o headbanging seja algo inevitável. Isso explica o motivo de Irrational Beings estar ao lado de Self-Chained no time de singles do álbum.
Existe, a partir da melodia criada na introdução, um forte flerte com três campos distintos do rock, o progressivo, o power metal e o thrash metal. Tudo isso é bem perceptível no despertar de The End. Porém, os subgêneros que se mostram predominantes na faixa são indiscutivelmente o thrash e o death metal. É curioso como, no refrão, a guitarra solo parece sofrer e, ao mesmo tempo, se rebelar contra esse próprio sentimento de insegurança e desproteção a partir de uma raiva latente.
A brutalidade, a raiva, o peso. Essas são características que muito denotam de The One, um disco que, acima de tudo, exala aspereza como forma de demonstrar insatisfações sociais e reflexões sobre a vida. Parece, de certa forma, infantil o meio que o Hammathaz encontrou para divulgar seus pensamentos de mundo, mas o fato de chocar não significa falta de maturidade. Mais do que isso, a má digestão proporcionada pelo álbum mostra que há, sim, o que ser discutido.
Para muitos, o protagonista dessa discussão acalorada é a dupla de guitarras formada por Stat e Marietto. Ou, ainda, o vocal indiscutivelmente potente e feroz de Pasqualini, cuja dicção do inglês se mostrou de qualidade. Agora, porém, Fernando Xavier terá a dura tarefa de fazer esse feito e, ainda, de expor esse mesmo ímpeto e força vocal nos próximos capítulos do quinteto sorocabano. Mas aqui, especialmente em The One, o responsável por instigar esse diálogo rompante foi Santos e sua bateria de linhas explosivas, pesadas, raivosas e agressivas.
E em meio de tantos sentimentos de descontentamento, o Hammathaz não teve outra saída a não ser se apoiar naquelas vertentes marginalizadas do rock. Dominada pelo death metal e suas frases rápidas, agressivas e cheias de rupturas rítmicas, a melodia do álbum ainda abraça subgêneros como o metal progressivo, o nu metal, o heavy metal, o metal, o thrash metal, o metalcore e, até mesmo, o power metal.
O mais interessante no meio disso é que o diálogo proposto pelo álbum possui momentos de clareza, do encontro momentâneo do consenso a partir de frases exponencialmente melódicas. Mas parece que, como acontece na vida, a vírgula dessa conversa proporcionou sempre duplos vieses interpretativos, o que, novamente, levou os instrumentos a formularem cenários de argumentos repreensivos.
E a arte de capa retrata bem esse cenário. Feita por Jean Michel, ela retrata o encontro de dois mundos. Da paz e do caos. Da transformação e do comodismo. Do diálogo e da impunidade. Da beleza e do obscuro. Tudo muito bem observado por um guardião, uma figura que posicionada ao centro e em primeiro plano, parece representar a figura bíblica do anjo caído.
Lançado em 18 de dezembro de 2020 via Voice Music e Defense Records, The One é um disco nada menos que potente. A brutalidade está em primeiro plano, mas a vontade de mudança e a busca por um diálogo sobre o mundo, sobre a vida e sobre as pessoas está encrustada em cada curva, cada quebra rítmica. A tarefa aqui é identifica-la.