NOTA DO CRÍTICO
Ele é um álbum que surge dois anos após o provocativo Fathers Of All… Motherfuckers. Um produto que chega pouco menos de 20 anos após o anúncio de American Idiot, álbum em que o grupo atingiu o apogeu da fama. De volta às raízes crítico-políticas, o Green Day anuncia Saviors, seu 14º álbum de estúdio.
É como observar, do alto de uma colina e ao som do vaivém das ondas do mar, um horizonte profundo tomando cores pasteis e gradativamente vívidas conforme o Sol vai tomando seu posto de rei do dia. É assim que a guitarra base recebe o ouvinte. Com acordes calorosos e reconfortantes, ela, enganosamente, com a adesão de uma segunda guitarra suja em um uníssono trotante junto à bateria de Tré Cool, encaminha o espectador para versos com rompantes melódicos que fluem para frases sonoras igualmente cavalgantes que comunicam, em sua essência, o pop punk típico do Green Day. É então que o timbre doce e com raspas de azedume de Billie Joe Armstrong entra em cena dando início ao enredo lírico da canção. Contagiante em seus rugidos súbitos que fazem a sonoridade crescer pontualmente, The American Dream Is Killing Me traz consigo, inclusive, sinais da inserção tímida de um blues rock ao estilo ZZ Top em sua receita estética. Surpreendendo o ouvinte, ainda, a faixa é agraciada por um momento de respiro em que violinos valsam em uma interpretação docemente agonizante e dramática que entram em sintonia com o teor debochado que, de certa maneira, parece soar como uma continuação linear do enredo de American Idiot, single do grupo. Afinal, neste novo material, o Green Day, além de representar a pressão do estadunidense em sua tarefa de manter as engrenagens ilusionísticas do sonho americano funcionando, agora há também a porcentagem de redes sociais atuais como o Tik Tok na receita da manipulação das massas. No mais, ainda existem críticas ferrenhas às políticas de privatização e uma associação desse cenário ao senso exagerado de individualidade, o qual leva a pessoa a assumir uma postura egocentradamente personalista.
Solar, excitante e enérgica em sua simplicidade pop punkeada, o novo ambiente apresenta uma precisão diferenciada a ponto de fazer o espectador perceber a contribuição de Mike Dirnt na base rítmica. Com seu baixo em tom grave, o músico deu à canção mais peso e consistência, mesmo quando ela flui para versos melódicos mais lineares. De refrão alegre, chiclete e contagiante, Look Ma, No Brains! é uma faixa que repete o feito da canção anterior. Enquanto The American Dreams Is Killing Me soa como uma continuação de American Idiot, a presente faixa se apresenta como uma segunda parte da odisseia Jesus Of Surbia. Afinal, o personagem da canção se mostra perdido, sem direção, renegado à falta de representatividade e interesse, além de fazer prevalecer a ausência da percepção parental de que ele, apesar de agir com uma carapaça rebelde, precisa de ajuda. Ainda assim, por outro espectro interpretativo, Look Ma, No Brains! traz uma história regida por um senso desmedido de infantilidade e intensidade juvenil, recriando, assim, a atmosfera púbere que glorificou Dookie.
Swingada, leve, contagiante. De riff abraçado por uma melodia levemente reggaeada, de maneira a extravasar um frescor praiano e descompromissado, a guitarra é o primeiro elemento sonoro a receber o ouvinte nesse novo cenário. Seguida pela entrada de Armstrong inserindo as linhas líricas, a sonoridade surpreende ao ouvinte por, após um coro vocálico, mergulhar em uma engrenagem suja e densa. Com boa contribuição do baixo ao incutir na melodia um corpo ligeiramente ácido e estridente, Bobby Sox chama a atenção do ouvinte por trazer, em seu enredo, os pontos de vista sentimentais tanto do garoto quanto da garota. Transcendendo um aroma púbere e fresco do primeiro amor, a canção é repleta de romantismo emaranhado por uma insegurança juvenil.
A união das guitarras, junto ao grave do baixo na base melódica, fazem com que a melodia transpire uma sedutora e irresistível sensualidade. Em verdade, ela se mostra mais densa do que as demais, mais sombria e com ares de maior suspense. Com o auxílio da agudez compassada das teclas do piano nos versos de ar, uma noção hipnótica e manipulativa insurge, enquanto as intonações de Armstrong transitam entre o deboche e a mesquinharia. Com admiráveis influências de Ramones em sua estrutura melódica, One Eyed Bastard ainda conta com um refrão cuja sonoridade remete àquela do ápice de 867-5309/Jenny, single de Tommy Tutone. Crua, suja e potente, a faixa é um incentivo mordaz à vingança, à conquista dos direitos e, ainda, pode dar a alguns a alusão de estar se referindo à relação de líder e subordinado e, a partir daí, instigando a desconstrução de tal hierarquia. Mesmo feito foi realizado, inclusive, pelo Alter Bridge em seu single Pawns & Kings.
Um reconfortante entardecer de verão, com a sensação do amornar da luz poente do Sol banhando os seios da face, é a proposta extrassensorial da nova introdução. Mesmo com poucos sinais sonoro, o ouvinte já pode identificar, com facilidade, uma similaridade melódica com aquela desenhada em Last Night, single do The Strokes. Com sonoridade densa, Dilemma traz, ainda, um pop punk raivoso que serve de cama para uma narrativa sobre recaídas, sobre vícios. Uma faixa que, acima de tudo, destaca a fragilidade e a insegurança de um indivíduo em lidar com os obstáculos da vida. Um indivíduo que, consciente de sua carência, pede ajuda para tentar vencer seus demônios.
Rápida, enérgica, áspera. Surpreendendo o ouvinte por já despertar em seu ápice, a canção se mostra um produto que, logo em seus primeiros instantes, desfila uma melodia contagiante, ainda que sua estrutura rítmica seja simples e padronizada ao modo Green Day. Solar e com notas curiosamente nostálgicas, 1981 é uma balada excitante que narra um romance proibido e sócio-moralmente conflitante. Rodada em um contexto de Guerra Fria, ela tem, em seu enredo, pinceladas questões políticas de outra época, 1981 é a necessidade do extravasar para se ver longe dos conflitos sócio-políticos que tiram qualquer sinal de normalidade. É a intensidade como fuga do sofrimento.
Se 1981 soou como uma balada, Goodnight Adeline chega para retirar tal crédito. Afinal, logo em seus primeiros instantes, ela desfila uma melodia denotativamente melódica, macia e chiclete. Saindo de uma intensidade controlada, ela mergulha em frases acústicas regidas pela suavidade do violão, elemento que acaba por, inclusive, inserir toques melancólicos à receita sensorial. De refrão atraente, penetrante e cativante, Goodnight Adeline traz um grande feito do Green Day por fazer com que um enredo que trata sobre um personagem regido pelo senso de desesperança e um misto de ausência de pertencimento e motivação tenha sua seriedade propositadamente ofuscada por uma melodia radiofônica. Dessa forma, enquanto alguns a cantam consciente de seu viés sensível que anseia por dias melhores e um encontro de instigações, outros apenas estarão a ouvindo pura e simplesmente embalados por seu som.
É como estar marchando sob um Sol nascente e balançando bandeiras de paz, de trégua. Com clima de esperança, a melodia traz uma alegria resplandescente que abrasa ouvinte com seu senso positivista. Fluindo para um ápice sujo e áspero, a canção comunica uma influência estética em relação àquela criada pelos Ramones que lhe confere uma ambiência urbana, mas leve. O curioso é perceber que, mesmo sob essa energia de contágio e sutil alegria, Coma City surge como uma canção que critica a imprudência e a agressão policial. Difícil, nesse sentido, não se lembrar do caso envolvendo Oscar Grant que, inclusive, foi retratado no longa-metragem Fruitvale Station.
A guitarra surge solitária com uma intensidade que faz com que os primeiros sinais de luz solar vindos por de trás das montanhas já tragam generosas doses de adrenalina e excitação. De certa forma, inclusive, é até possível perceber, em meio à sujeira e aspereza com que se pronuncia, que o instrumento recria uma ambiência de Los Angeles dos idos dos anos 80 a partir de sua estética que beira o glam metal. Fluindo para uma melodia ondulante com protagonismo do tilintar agudo do cowbell na contagem do tempo rítmico, Corvette Summer se torna uma obra adocicadamente contagiante em que tanto a cadência quanto a melodia vocal durante seu refrão recriam a mesma sonoridade presente em All Around The World, single do Oasis. Com cenografia descontraída e uma energia ligeiramente divertida, Corvette Summer, com seu enredo sobre um personagem que se utiliza da sonoridade do rock n’ roll como método de aliviar seu sofrimento, se enquadra, melodicamente, na mesma seara radiofônica de Good Night Adeline.
Com um aroma nostálgico estonteante, a melodia, ainda que se encontre em processo de construção, apresenta uma arquitetura inédita em Saviors. Fornecendo um experimentalismo entre o indie rock e o folk rock ao estilo R.E.M., Suzie Chapstick possui uma temática sonora embriagante em sua linearidade sonora que abraça, confortavelmente, um enredo sobre coração partido. Por isso, diferente de Bobby Sox e 1981, a canção traz um personagem em um estado de incapacidade de superação das dores sentimentais que o fazem sonhar com um reencontro, um recomeço. Uma segunda chance.
A partir da união entre voz e guitarra, o imediato despertar da nova canção já proporciona um ligeiro parentesco estético com aquele também desenhado pelo Green Day em seu single Scattered. Melódica em sua crueza, a presente melodia recria, portanto, a energia adquirida em álbuns do grupo que abrangem as proximidades temporais da era Dookie. Não à toa que, por vezes, o movimento feito pela guitarra ainda consegue retirar sons que rememoram o riff icônico de Basket Case. Curiosamente, ainda, conforme sua arquitetura sonora vai crescendo e tomando corpos mais maduros, a faixa também acaba criando parentesco com Letterbomb, outro single do trio. Fora suas igualdades estéticas, Strange Days Are Here To Stay consegue juntar nostalgia e melancolia, enquanto dialoga desesperança em um caos social quase anárquico. Promovendo uma discussão sobre o exacerbado senso de individualidade, intolerância e personalismo, a faixa consegue fazer com que o ouvinte acabe se interessando por uma reflexão social por trazer a desesperança e a desordem como protagonismo de um circo de horror em que a sociedade caminha para uma orfandade de representação e compaixão.
Enérgica em sua esfera ondulante, a melodia traz, sem demora, uma espécie de raiva fundida em uma adrenalina curiosamente entorpecida. Com destaque aos tilintares do pandeiro quando flui para seu ápice, Living In The 20’s se utiliza de seus pouco mais de dois minutos de duração para tratar de temas anacrônicos em relação ao ano proposto. Dialogando, entre puritanismos, sobre a manipulação midiática e a influência da tecnologia na rotina social, Living In The 20’s é uma obra que, essencialmente, trata da fragilidade do indivíduo quando inserido em um ambiente repleto de estímulos. Uma fragilidade capaz de fazê-lo esquecer de sua própria essência.
É como observar o arco-íris se formar diante de uma garoa em forma de véu de noiva em contato com a luz do Sol em um anoitecer de outono. Sentado na beira de um penhasco, o indivíduo fica com os olhos penetrados em tal cenário, mas de presença física distante, como se viajasse livremente pelo espaço-tempo em uma velocidade assustadora. Antes mesmo que pudesse notar a presença de outra pessoa, o personagem é surpreendido por um abraço caloroso e reconfortante que amorna seu coração por completo. Iniciada por uma doce valsa proporcionada pelo violão, a canção é agraciada, ainda, pelo gentil perfume cuidadosamente gélido proporcionado pelo piano. Completa por uma valsa serena e esvoaçante dos violinos, Father To A Son se torna uma faixa tocante em seu contexto melódico que transcende às linhas líricas. Afinal, sob uma interpretação de intensa delicadeza, Armstrong convida o ouvinte para caminhar perante a relação de carinho e amor entre pai e filho. Uma relação que destaca o caráter humano dos indivíduos de forma a, ainda que suscetíveis ao erro, garante um mútuo desejo por um mundo melhor para se viver. É uma verdadeira antítese apoteótica entre o mundo que se tem e o mundo que se almeja. Desta feita, é difícil para que, aqueles que são pais e para aqueles que são filhos, não fiquem com lágrimas no rosto em virtude da honestidade humana com que Father To A Son representa a vontade altruísta de um progenitor para que sua cria cresça e viva em um lugar melhor que o seu.
Seu início já é regido por uma frase melódica simples, mas imponente e consistente. Estimulante e excitante, a canção marca uma perfeita sincronia entre guitarra e bateria no que se refere à criação de um ambiente de esperança. Uma esperança cega pela presença de um personagem quase mitológico, cuja tarefa é salvar o mundo de seu caos estrutural. Não por menos que os versos que melhor definem a faixa-título são “calling all saviors tonight” e “make us all believers tonight”. Dessa forma, a canção destaca, ainda, a ausência do senso de representatividade e, principalmente, de um misto de pertencimento e importância a tal ponto que demande a atenção dos superiores para com uma sociedade renegada à marginalização.
É como ouvir o barulho da maré vindo além da janela embaçada. Imerso em um cenário extremamente desarrumado e desarmonioso, o personagem se encontra em um estado de dormência, entorpecido após a ingestão de produtos de caráter tranquilizante e alucinógeno. Quase como uma aparente perfeita trilha sonora da trilogia Se Beber, Não Case, Fancy Sauce é regida por uma sonoridade que desperta um senso de deboche e hilaries no ouvinte por meio de uma estrutura sonora minimalista. Com um refrão de cunho dramático com pontuais e propositais explosões para ampliar sua harmonia, Fancy Sauce traz um enredo de fato dramático por apresentar um personagem julgado de louco por estar perdido em uma profunda e amarga tristeza. Misturando, ainda, noções do senso de manipulação de um mundo hiperconectado com a forma como a sociedade no geral se apresenta com uma fraca percepção de si a ponto de se apresentar de maneira sempre insegura e influenciável, Fancy Sauce destaca uma curiosa noção de vitimismo estrutural vinda de uma comunidade ausente de seu próprio autoconhecimento.
É necessário dizer, antes de qualquer coisa, que Saviors surpreendeu as expectativas. Surpreendeu por misturar leveza e seriedade, deboche com rechaço, reflexão e hilaries. Um álbum que, certamente, irá catapultar novamente o Green Day para um posto de estrelato no ramo musical graças à sua perfeita equalização entre as ambiências extrassensoriais e melódicas de álbuns como Dookie e American Idiot.
Não é apenas por isso que se nota uma familiaridade estética entre os materiais. Afinal, o presente compilado de 15 faixas inéditas transcende um frescor áspero e azedo, enquanto discute assuntos de pura reflexão nos espectros socioculturais, socio-comportamentais e sociopolíticos.
É nesse ponto que o trio mergulha em questões tais como autoconhecimento, pertencimento, representatividade, solidão, as antíteses de esperança e desesperança. Indo para campos mais leves, também há canções que tratam do amor e do romance, como acontece em Bobby Sox e 1981, e da superação das dores do coração, como faz Suzie Chapstick.
Repleto de frenesi, excitação e vivacidade entre suas frases explosivas, Saviors traz uma crueza sonora há muito não revisitada pelo Green Day. Conquistando, assim, um som sujo e intenso, o trio californiano, desta vez, parece não ter se preocupado muito com o oferecimento de baladas e melodias redondamente radiofônicas. Afinal, entre seus 15 capítulos, apenas Goodnight Adeline e Corvette Summer se enquadram no referido quesito.
Transpirando requintes de raiva e absurdez, o álbum ainda tem destaque por ser, nele, nas palavras do próprio Armstrong, que a faixa mais visceral e autobiográfica foi incluída no tracklist. Dilemma é a música em que o vocalista propõe, de maneira transparente, a discutir, de braços abertos e sem medo de julgamentos, sobre o enfrentamento de seu vício com álcool.
Claro que, sem a companhia de outros dois importantes componentes, Saviors não alcançaria tamanha ousadia e rispidez. Afinal, enquanto Cool fez com que cada faixa se tornasse fluída e precisa, Dirnt tornou as bases melódicas com um aroma áspero e estridente, cooperando, assim, com a crueza que transpira de sua melodia.
Sintetizando essas qualidades está Chris Lord-Alge. Na função de engenheiro de mixagem, Alge reassume a parceria com a banda pausada em 2009 com 21st Century Breakdown. No presente álbum, o profissional preserva a estridência, a aspereza e a crueza do som do Green Day fazendo com que o álbum soasse mais vivo e intenso. Dessa forma, ele ressaltou o pop punk que fez o nome do trio, mas também destacou experimentações no campo do indie, do reggae, do glam metal e do blues rock.
Na função de produtor, por sua vez, vem o parceiro de longa data Rob Cavallo. Assim como Michael “Elvis” Baskette é para o Alter Bridge, Cavallo o é para o Green Day: o outro membro oficial, mas que fica na coxia. Como um roteirista, o profissional uniu as necessidades e desejos do grupo para com o álbum e fez com que o material firmasse uma perfeita intersecção entre crítica e diversão.
Lançado em 19 de janeiro de 2024 via Reprise Records, Saviors traz o Green Day reassumindo a força e virilidade de American Idiot. Se mostrando mais maduro, responsável e até mesmo consciente pela sua posição de influência, o trio californiano conquistou, com Saviors, o equilíbrio ideal entre a máxima estridência e a melodia de cunho radiofônico.