Gabeu - AGROPOC

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

A rotina parece estar voltando ao normal. As pessoas sendo vacinadas e a Covid-19 começa seu trajeto rumo a uma convivência respeitosa com a sociedade. Em um cenário de esperança pela normalidade, a música brasileira ganha mais um expoente. Depois de diversos singles lançados ao longo do ano, Gabeu finalmente anuncia AGROPOC, seu álbum de estreia.


Som de sintonização de deal. Ao fundo, uma melodia de temática mexicana domina o instrumental que acompanha de maneira onipresente Gabeu, quem introduz o ouvinte para o que é tido por ele ‘um som que vem do interior’. Essa é a faixa-título, um produto que funciona como um anfitrião que recepciona os convidados para um evento.


E o evento AGROPOC tem seu verdadeiro despertar com Sugar Daddy. Exalando o sabor, o odor, a pureza e a simplicidade do sertão a partir das notas da viola trazidas por Junior Maya, a música logo recebe um vocal grave e anasalado. É Gabeu colocando na pauta lírica a questão da autovalorização e da autoestima num misto de empoderamento e crítica ao machismo. Melodicamente, a faixa guarda algumas felicidades. A partir do pré-refrão, a sonoridade vai ganhando novos elementos, mas ainda calcada no sertanejo. É propriamente no seu ápice que a faixa mergulha no universo nordestino com Gustavo Batata imprimindo o xote na base rítmica das linhas da bateria. Além disso, as notas do acordeom fazem com que, ao analisar a conjuntura instrumental, se perceba a presença do arrocha na melodia. Ainda, é importante mencionar que, inseridas pelo arranjo de Fabrício Almeida, as notas do trompete durante o solo oferecem uma cadência que muito lembra a melodia de Mundo Animal, faixa dos Mamonas Assassinas.


Os gritos alvoroçados de uma plateia ensandecida preenchem o ambiente. Quando a bateria eletrônica evidencia a atmosfera forrozeira proposta por Bailão, a sensualidade melódica toma conta do ambiente ao mesmo tempo em que se cria uma energia festeira conforme Gabeu vai introduzindo uma letra sobre amor em uma narrativa que discute a impulsividade, a inocência e o desejo pelo ato da entrega. Com a guitarra de Giovanni Costa imprimindo traços sertanejos ao forró, faz parecer que a canção aborda a famosa dor de corno, mas é muito mais do que isso. Existe aqui uma crítica à impulsividade, à ausência do pensar e à confiança desmedida perante aqueles que ainda são desconhecidos. Ainda assim, é indiscutível que Bailão possua uma melodia cativante e atraente que seja capaz de atrair solteiros e casais para extravasar o sofrimento em uma dança acalorada.


A tristeza é a sensação. A melancolia é a energia. Esse é o ambiente construído pelas singelas notas do violão de Drésão, o instrumento de protagonismo absoluto na introdução de Cowboy. Assim como Bailão, o lirismo aborda a sofrência típica do lirismo do sertanejo universitário. Ao mesmo tempo, a presente faixa é uma música de frases cujo cunho sexual é escancarado, mas estranhamente blindado de tal maneira que é suavizado por um ritmo que, no refrão, evolui para algo de grande melodia. Com direito ao ato de parafrasear a icônica frase dita por Chitãozinho & Xororó no refrão de Fio de Cabelo, Gabeu discute sobre o merecimento de estar em uma relação não-recíproca em uma clara alusão à realidade de relacionamento abusivo em que uma das partes não possui nem voz ativa ou amor-próprio. Um alguém submisso.


Existe um blend rítmico-territorial interessante. Enquanto o violão entrega uma mistura de sertanejo e música espanhola, o som do mussete dispensa descrição. Afinal, suas notas doces de perfumes jorrados à brisa do vento transportam imediatamente o imaginário do ouvinte para um cenário francês. Recheado de elementos percussivos que dão à melodia um ar caribenho, Queda D’Água é uma faixa de interpretação de Reddy Allor e cuja letra trazida por Gabeu foge do conforto perante o sofrimento e visa a reenergização, o virar de página. No meio de toda essa ambiência complexa em ligações melódicas está, ainda, Renato Bacah, quem coloca o último toque sonoro na canção: um teclado de notas agudas que temperam a harmonia com toques do brega. O mais interessante é que, mesmo cheia de elementos, Queda D’Água é uma música completa cuja melodia não apenas agrada, mas também embala o ouvinte que consegue identificar cada detalhe ritmo-imersivo proposto.


É verdade que AGROPOC possui uma faixa chamada Cowboy. Porém, ela não oferece ao ouvinte a sensação de se estar no velho-oeste. Esse feito é conquistado brilhantemente por Bandoleiro e Atacante, uma faixa que, com som de águia e cavalo, faz com que o espectador se sinta em uma cidade inabitada do sertão estadunidense e seja capaz até mesmo de ver os rolos de poeira sendo levados pelo vento rua adentro. Como roupagem a esse cenário, Gabeu e seu time de músicos construiu uma melodia country bem compassada. Ainda assim, o ponto forte da canção é o lirismo. Afinal, o enredo e a narração feita fazem com que o espectador se sinta parte da história e consiga imaginar cada cena e situação descritas. Com coro de oito vozes acompanhando a narrativa, a faixa possui um enredo de fim trágico que ilustra o amor pelo perigo, a atração perigosa.


Lampejos de reggaeton são notados nos primeiros instantes sonoros. Esse gênero musical panamenho divide harmonicamente o espaço melódico com um ritmo cuja levada é nordestina e atual: o piseiro. De melodia mais acelerada e com protagonismo do acordeom, Esconde-esconde tem participação notável de Vinicius Paschoal, afinal, são as linhas do baixo por ele criadas que denotam a cadência swingada da faixa.


Um sentimento misto de melancolia e nostalgia se forma a partir das notas agridoces do violão. De repente, uma surpresa. Novamente o arranjo é o responsável por inserir na melodia notas de trompete que imputam uma atmosfera mexicana latente. Isso transforma por completo a energia de Bem Te Vi, pois faz com que a faixa assuma lampejos de alegria com cores vivas e encarne, assim como em Esconde-esconde, características do reggaeton. Com elementos percussivos enfeitando o ritmo, outro importante ingrediente engrandece o cenário: a voz introspectiva, aveludada e de sopros guturais de Bemti, quem entra na segunda estrofe dividindo o microfone com Gabeu. Imputando um caráter sertanejo à canção, o convidado auxilia o anfitrião na estruturação de um refrão melódico e cativante cuja estrutura remete a estética sonora singela e delicada das canções da dupla Victor & Leo.


Existe doçura, mas ao mesmo tempo há dramaticidade e lamento nas notas do piano. A estrutura narrativa possui igual qualidade que a de Cowboy, a diferença está no teor enérgico. Sofrido, o enredo lança luz para dúvidas sobre a existência de erro no processo de criação dos filhos. Com participação precisa e que oferece confiança a Gabeu, Silvana Vieira preenche o ambiente com seus falsetes singelos e doces em meio a um lirismo que aborda depressão e possivelmente suicídio. É inevitável que os olhos do ouvinte não fiquem marejados pelo peso das palavras, pela imaginação das cenas descritas ou mesmo pelo arranjo regado em violinos principalmente quando há uma crescente instrumental. Filho deixa de legado uma mensagem de atenção, de amor, de companheirismo e compaixão.


Saindo do ambiente escuro, triste e sofrido de Filho, Gabeu recobre os sentidos e refresca a alegria e o ânimo com Amor Rural, música que possui início protagonizado por uma guitarra de notas agudas e melódicas tal como pede o sertanejo. De levada leve e suave, a canção não esconde, mesmo se usando de metáforas no início, que o lirismo aborda a questão do assumir a sexualidade e de ter coragem de banca-la. 


Melodicamente, uma reciclagem madura. Afinal, o piseiro e o arrocha dividem espaço com ritmos nacionalmente clássicos como o sertanejo. Miscigenada por, através das 10 faixas, convidar o ouvinte a transitar por sonoridades mexicana, espanhola, francesa e panamenha. Isso é AGROPOC.


Com arranjos complexos, contando com acordeom, violão, bateria acústica e eletrônica, baixo e um coral com oito vozes, o que se tem é uma complexidade harmônica que não fica pesado ou cansativo para o ouvinte. Afinal, a sinergia existente entre o time de músicos recrutados por Gabeu, o qual ainda conta com nomes como Diego Randi e, no âmbito de composição, Well Bruno, é evidente. Isso é AGROPOC.


Liricamente ultrajante e combativo. Ultrajante pela ousadia e combativo pelo enfrentamento. Temas delicados perambulam pelo álbum, tais como aceitação, depressão e autoestima. Mas é inegável que o principal fator está na luta pela igualdade, pela busca de fazer com que, independente da orientação sexual, todos sejam aceitos e, assim como foi dito em Filho, sejam amados como se ama um filho. Isso é AGROPOC.


Trazendo a energia central do álbum, que é o bucólico, o sertão e o interior, vem a arte de capa. Feita pela equipe Gabriel Renné, Paulo Gallo e  Pedro Calderaro, ela traz Gabeu em trajes roceiros que se misturam com elementos urbanos em meio à indumentária adotada. Isso por si só já comunica pluralidade em um lugar-comum. Com olhar pensativo e envolto em cores pastéis, o que o vocalista deixa de sensação é o desejo, a reflexão que busca por um mundo sem homofobia e sem medo das diferenças. Isso é AGROPOC.


Lançado em 10 de agosto de 2021 de maneira independente, AGROPOC pode ser tido por alguns como a voz dos excluídos. Mas a verdade, como frisou Gabeu, é que essas pessoas existem e não são excluídas. São negadas por aqueles que são fechados em seus próprios mundos unilaterais, sem riqueza interior ou amadurecimento. AGROPOC é a perfeita miscigenação rítmica que comunica em alto e bom som: o mundo também é nosso. Um disco de todos. Isso é AGROPOC.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.