NOTA DO CRÍTICO
Poucos meses depois de anunciar Café, Cigarro E Poesia, seu EP de estreia, o baiano Cleyton Cézanne alça novos voos ao divulgar Molejo De Menina, seu primeiro disco de estúdio. Gravado na cidade história de Cachoeira (BA), o álbum levou um ano para ser finalizado.
Uma voz de timbre agridoce e de toques levemente nasais faz a onomatopeia do tiquetatear do relógio. Cleyton Cézanne, por meio de uma ambiência carioca, mais precisamente dos morros da Cidade Maravilhosa, faz com que a canção se apresente como uma expoente do pancadão, mas um pancadão de veias curiosamente psicodélicas. Sendo capaz de transmitir o molejo e o rebolar amaciado e sedutor de quadris requebrantes, Tic Tac Bum pode parecer, para muitos, uma faixa apelativa, lasciva e, portanto, puramente sexual e vazia. É fato que a canção se utiliza, sim, do quesito corporal, mas mesmo nesse artifício, Tic Tac Bum mergulha, a partir do som do relógio, em metáforas que convidam o ouvinte a refletir sobre a rotina, sobre a pressa e, por que não, sobre o senso de escravidão que transpira dos segundos, dos minutos, das horas. Do tempo.
Difícil não perceber a influência estética de nomes como Banda Bejo, com especial menção ao seu single Bate Late, na estrutura da introdução que se apresenta. Sob um céu de Sol intenso, um calor transpirante e um clima de verão janeiresco, a faixa-título não demora em fornecer o axé como base e convidar o ouvinte para a dança corpo a corpo. Swingada, com direito à mistura do sonar de guitarra elétrica com instrumentos de sopro e elementos percussivos dando um corpo atraente e excitante à melodia, a faixa-título comunica ligeiros goles de reggae enquanto se matura como um produto irresistivelmente tropical. Fresca principalmente pelo sonar opaco do atabaque, a canção é uma ode não só à Bahia, mas à cultura regional, ao caráter da ampla e incansável receptividade. É o laico fundido ao cosmopolitismo. É o legado dialogando diretamente com a gratidão e o orgulho de ser filho do afro.
O xote, por si só, é um ritmo que contagia. E aqui, ele se apresenta em uma forma macia, educadamente sensual e com um perfume adocicadamente floral graças à agudez da sanfona. Você Mel é o puro romance com gosto de maçã do amor e regido por uma ingenuidade cativante que é ambientada na festa de São João. Difícil não fazer o ouvinte entrar em nostalgia ao lembrar do primeiro amor, do primeiro beijo e do nervosismo do primeiro toque entre as mãos. Em Você Mel, o amor está no ar em meio à quadrilha junina.
O xote ressurge com força nessa que é uma melodia que mantém a consistência do regionalismo musical nordestino. Tendo o tilintar do triângulo como um principal elemento para alcançar tal feito, a faixa ainda se apoia nos assobios de Cézanne como forma de criar um elo mais firme entre melodia e ouvinte. Marcante, Café, Cigarro E Poesia continua a trajetória do enredo de Você Mel e traz os personagens em meio a uma relação mais madura e estável, mas ainda regida pelo amor incondicional e inabalável. Aqui, é como se a festa de São João tivesse se estendido para a orla da praia. Com um céu regido por um entardecer de verão, Café, Cigarro E Poesia acompanha o casal apaixonado caminhando com os pés na areia enquanto estes são banhados pelo vaivém das marolas.
O som do vaivém das ondas não causa somente a sensação de frescor. Ela traz consigo também o senso de conforto e de uma curiosa proteção. Ao lado da adocicada agudez do ukulele, o conforto ganha silhuetas nostálgicas e macias enquanto se matura um reggae cheio de ternura. No entanto, Te Amo Meu Bebê chega com a função de encerrar o trio romântico iniciado em Você Mel com um enredo de distância que metaforiza o término do relacionamento, um encerramento banhado pelo sentimento de saudade. Como um casal que se ama incondicionalmente, Te Amo Meu Bebê traz, em meio ao caos do fim, a esperança da reconciliação. O alento do perdão e a reciprocidade da segunda chance.
A fumaça da chaminé do vagão do maquinista é vista alcançando o teto da estação ferroviária. Os burburinhos incompreensíveis das conversas paralelas dos pedestres sonorizam um cenário corriqueiro, mas caricato de tão importante, principalmente nos idos da década de 50. Apenas com o som ambiente das buzinas e do movimento das rodas do trem, A Estação é um interlúdio que comunica a rotina, aquele momento que é vivido no piloto automático por ser o elo entre dois instantes de um mesmo dia. A pressa, os compromissos. Os passos largos e acelerados. Os pedintes estendidos ao chão pedindo esmolas. Cigarro, dinheiro, fumaça. O relógio que não pára. A Estação é o recorte de um momento que simboliza a doença do século XXI.
Uma valsa embrionariamente disneyresca nasce a partir do sonar esvoaçante do violino. Em seguida, o frescor assume ares latentes a partir da agudez floral do clarinete, o qual dá passagem para uma amaciada e convidativa MPB. Entre raspas de bossa nova e base sambada, Samba De Seu Zé se apresenta como uma canção melancólica de vanguarda que, em sua essência, traz a tradição do brasileiro em não ser um povo que desiste ao primeiro escorregão. Com requintes de lambada, a canção, apesar de ser narrada com um vocal de pronúncias encerradas em sussurros, traz imponência, persistência e determinação de um personagem que representa todo um povo que não desiste de seus objetivos e enfrenta qualquer adversidade, seja ela provinda de retaliações ou qualquer tipo de manifestação de intolerância.
É engraçada, ou melhor, curiosa, a escolha de Cleyton Cézanne optar pelo instrumental de Samba De Seu Zé como encerramento de Molejo De Menina. Afinal, a melodia traz uma mistura de melancolia com maciez em um céu poente carregado de lágrimas. Ainda assim, essas mesmas lágrimas são regidas por um senso de esperança e pela determinação de fazer do novo amanhecer uma nova oportunidade de fazer acontecer, de fazer a mudança. De transformar o que virou monotonia. E essa melodia, agora mais facilmente degustada, traz samba, bossa nova, pagode, MPB, lambada e até mesmo merengue. Tudo se fundindo em uma atmosfera inteiramente latina que transforma o passar dos créditos, uma experiência alegremente contagiante.
Apesar de ser formado por faixas que já apareceram em seu EP de estreia, Molejo De Menina é um material que mostra maturidade, mas sem deixar a sensibilidade de um indivíduo que respira afeto, carinho e amor. Afinal, no presente trabalho, Cleyton Cézanne não fala apenas pelo cérebro. Ele faz do coração a sua inspiração lírica e melódica.
Novamente firmando parceria com Eridan Lelis nas construções sonoras, Cézanne oferece ao ouvinte um material que caminha do afeto à resistência. Do orgulho à gratidão. Do simples ao bem elaborado. Não à toa que em Molejo De Menina cada som funciona como uma viagem extrassensorial, um teletransporte para ambientes que traduzem as falas não verbalizadas do som.
Da trilogia romântica Você Mel, Café, Cigarro E Poesia e Te Amo Meu Bebê, o ouvinte também tem acesso a obras que misturam conceitos de resistência, autoconfiança e predestinação, como Samba De Seu Zé. Além disso, Cézanne propõe um debruçar nas origens de um Brasil afro, cheio de orgulho, compaixão e gratidão pelos antepassados que, bravamente, lutaram para manter sua essência viva. E isso está presente na faixa-título.
Mais ainda que no seu EP de estreia, Cézanne alçou voos definitivamente experimentais em Molejo De Menina. Afinal, dentre as oito faixas, o músico, ao lado de Lelis, faz com que o ouvinte caminhe pelo pancadão psicodélico, pela MPB, pela bossa nova, pelo xote, pelo reggae, pelo samba, pelo pagode, pela lambada, pelo merengue e pelo axé, fazendo do álbum uma verdadeira obra latina.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada também por Cézanne, ela consiste em uma obra de cunho comunitário por aludir ao senso de união. Adornada por diversas cores em tons pasteis, cada contorno de pessoas, bem como as suas disposições, dão uma interpretação de igualdade e respeito, mesmo a partir das diferenças que podem vir a destoar do conservadorismo social.
Lançado em 08 de dezembro de 2023 de maneira independente, Molejo De Menina é o Sol, é a dança, é o orgulho, é a gratidão. É um material que, em meio ao cosmopolitismo regional, dá voz ao coração enquanto liberta o indivíduo de prisões do mundo moderno, como o tempo, o conservadorismo e a intolerância em suas várias facetas.