NOTA DO CRÍTICO
Ela já está há 15 anos no mercado da música brasileira. Vinda de São Carlos (SP), ela coleciona um total de dois materiais já lançados. São eles Once, o álbum de estúdio de estreia, datado de 2015, e o primeiro EP, Broken Vow, de 2017. Em 2023, porém, o Aske deu mais um passo em sua carreira ao anunciar Vol. II, seu segundo álbum.
Não existe uma introdução tradicional, daquelas que se forma de maneira gradativa. Aqui, a canção já tem seu início regido por uma estrutura rítmico-melódica madura. De sonoridade áspera e de base suja, ela logo oferece o despertar das camadas líricas por meio de um vocal misto de gutural e drive. Misturando, ainda, toques de screamo em seu tom rasgado, Filipe Salvini se posiciona no topo do rochedo protegido pelo incêndio causado pela união da bateria de Thierry Dettmer e da guitarra de Lucas Duarte, mas não a salvo do céu enegrecido. Por meio de um black metal de toques curiosamente melódicos, Sinner é onde o Aske traz a história mórbida, desesperançosa e sombria de um pecador preso em sua própria prisão de culpa. Culpa essa que só sana quando adormecido no túmulo assombrado pela dor.
A guitarra surge como primeiro elemento sonoro a puxar a introdução. Sob um riff afinado em sua curiosa estridência agudo-adociada, ela é acompanhada por uma guitarra base que a auxilia na criação de um cenário curiosamente dramático. Ganhando toques melancólicos a partir da entrada do baixo em sua corpulência linear, a canção sofre um turning point narrativo-melódico gritante. Agora explosiva em sua visceralidade azeda e dolorosa, No Soul To Sell se perde por entre um lirismo recheado de rimas pobres que ajudam na formação de uma atmosfera fabulesca, enquanto dialoga sobre a chegada de um novo indivíduo no reino do Diabo, o qual passa a somar no exército de almas penadas. De certa forma, é possível de enxergar No Soul To Sell como uma obra que fala daquela pessoa de atitude falsamente religiosa.
No novo cenário, não existe luz. Nem sintética, nem natural. É apenas escuridão. Quando em penumbra, a luminosidade vem proveniente de pequenas chamas que, em momentos pontuais e desavisados, explodem em labaredas colossais capazes de representar a raiva e o ódio. Sob uma estrutura rítmico-melódica que já começa azeda, Music Knows No Allegiance acaba representando a estética do death metal em sua pura essência, enquanto apresenta um enredo da mais pura falta de confiança na fé. De cunho ligeiramente cético, a canção traz a fé como uma estrutura frágil que hipnotiza a sociedade com seus dogmas regidos por uma falsidade travestida em pureza.
Curiosamente, a presente canção nasce mais branda em relação às anteriores. Ainda que se possa notar a rispidez, a densidade e a aspereza como ingredientes centrais de sua narrativa sonora, a melodia se apresenta sobre uma movimentação ondulante que a torna mais acessível aos públicos aquém do escopo do thrash metal e subgêneros afiliados. Tendo como responsável por essa façanha o baterista e as frases por ele desenhadas, Represente Satanás é a primeira canção de Vol. II a ser cantada em português. Curiosamente, esse fato deixou a ambiência um tanto mais sombria e provocativa, enquanto sua estrutura rítmico-melódica é capaz de caminhar livremente por campos que vão do metal ao punk, passando pelo hardcore e, inclusive, tropeçando no post-grunge. Com essa roupagem mista, Represente Satanás é uma faixa em que parece dialogar com o falso senso de fé, enquanto vangloria a figura do Satanás como o único ser verdadeiro em suas ações e pensamentos.
Ela nasce melancólica a um ponto em que, curiosamente, flerta com a estética sonora do emocore. De paisagem escura, sob um céu enegrecido e rente a um mar revolto, o mago observa o horizonte em seu esplendor de caos em meio a relâmpagos clareando os arredores e os trovões sonorizando o aparente vazio infinito. Conforme aquele cenário destruidor começa a se posicionar cada vez mais perto, o personagem se põe de joelhos esboçando uma feição que mistura tristeza e rendição. Sonorizando essa cenografia imagética, está uma melodia que, agora, está evoluída em suas silhuetas metalcore intensas e mantendo o mesmo tom de rispidez atingido na canção anterior. Caminhando, também, por entre fortes menções ao death metal, The Origins Of Satan é narrada sob uma voz gutural e rasgada que narra o nascimento de um ser fisicamente belo, mas inteiramente cruel em sua máxima essência. Nesse sentido, existe, aqui, uma interessante crítica ao preconceito em relação às aparências. É o rechaço à intolerância, ao racismo ou a qualquer outro tipo de comportamento que denigra a imagem do outro pura e simplesmente pela forma como este se mostra.
A bateria serve como um perfeito abre-alas do novo cenário. Sob golpes sequenciais e precisos na caixa, de forma a ressoar ligeiramente estridente, tal frase percussiva soa como uma marcha receptiva para uma figura importante que está se aproximando. Explodindo em uma estrutura rítmico-melódica ondulante, mas mais sombria que aquela fornecida em Represente Satanás, Royalist transpira uma base constantemente trêmula e de caráter assombroso graças à maneira como o baixo se destaca em sua estridência azeda. Curiosamente, a presente faixa apresenta o enredo lírico mais questionador de todo o álbum. Afinal, aqui o Aske põe em xeque o sexismo associado ao machismo, a luta de classes e evidencia a profundidade do abismo da distribuição de renda, nesse caso, com críticas implícitas ao capitalismo.
Seu início é capaz de misturar o drama com o sombrio. Toques místicos, inclusive, exalam do riff da guitarra, instrumento responsável por puxar, sozinho, a introdução. Surpreendentemente, a canção explode em uma intensa, vívida e incandescente estrutura rítmico-melódica calcada na métrica de um heavy metal que flerta com aquele criado pelo Black Sabbath. Exaltando uma sujeira ainda mais saliente que aquela obtida nas canções anteriores, a presente faixa é onde o lo-fi, como ingrediente melódico, é mais facilmente identificado. Transitando, inclusive, pelo thrash metal, A Bruxa E O Cardeal é a segunda e última canção de Vol. II em que Salvini oferta ao ouvinte um lirismo com a presença massiva do português. Bruta, ácida, intensa e trotante, a presente faixa, se apoiando no vaivém entre italiano e português, traz um revisitar dos séculos XV ao XVII. Afinal, tal como aconteceu na transição da era medieval ao período moderno, a canção narra a intolerância religiosa e a supremacia da igreja católica.
Um início melodioso, ainda que ríspido e intenso, serve como um prato de entrada à canção que se apresenta. Tal como aconteceu em Represente Satanás, graças à levada desenhada pela bateria, a presente música conquista uma base rítmica fluida, curiosamente contagiante e, portanto, de estrutura mais melódica e acessível a todos os públicos de forma geral. Sem perder sua essência, contudo, Eva (Tears From Sodom) traz uma estrutura rítmico-melódica que caminha entre o metal alternativo, o screamo e o heavy metal. Com essa receita, Eva (Tears From Sodom) narra a chegada do dilúvio final e a redenção ao homem morto do mar em um puro ato de impotência frente aos poderes do invisível.
Emfim é chegado o retorno à sonoridade black metal tradicional. Áspera, suja e com direito a rifffs de guitarras sobrepostos entre tons agudos e graves a ponto de criar uma atmosfera cheia de agonia, a nova canção traz, inclusive, um lirismo interpretado por um vocal rasgado que sugere raiva e agressividade. Tendo o blast beat executado pela bateria como delimitador da estética rítmica, a música transpira, até em sua base, um aroma de violência e pura inquietação. É assim que The Woodcutter conta, sob um enredo curiosamente folclórico, a história de um lavrador que sucumbiu ao desejo.
É chegada a canção de essência mais melodramática de todo o álbum. Pazuzu (Lost Into A Valley Of Rot) é onde todos os instrumentos têm suas dores e tristezas ouvidas e sentidas individualmente. Nesse ínterim, enquanto a guitarra desfila sua sujeira ácida habitual, o baixo acaba caminhando por entre sobreposições que lhe conferem tanto estridência quanto um corpo mais aveludado, o que representa a dicotomia sensorial da canção. Sombria, mas com momentos em que a estrutura rítmico-melódica chega a flertar com o metal alternativo, Pazuzu (Lost Into A Valley Of Rot) é também a primeira faixa em que a voz de Salvini é ouvida, mesmo que em curtos momentos, em sua limpidez cristalina. Ainda assim, a faixa tem um caráter cru e com um black metal enraizado em sua estrutura de forma a servir como a perfeita sonorização de um enredo que traz um indivíduo sendo recebido no inferno. Um ambiente trevoso, sem qualquer respingo de esperança e imerso em uma agonia visceral e canibalesca. Um lugar em que toda dor do sacrifício terá um propósito a partir do medo.
Com Vol. II, o Aske apresenta a esfera mais brutal dos subgêneros do rock. Além de abrir a porta do thrash metal, o álbum caminha o mais profundo possível até encontrar a masmorra dessa subdivisão. Lá, no mais escuro e pegajoso canto, é onde o álbum escolheu se alojar. Por isso, ele soa sujo, áspero, trevoso, maléfico e até mesmo asqueroso em certos momentos.
Trazendo consigo temas como satanismo, anti-cristianismo e niilismo, o álbum ainda oferece subcategorias líricas. Apresentando subtemas que aparentam ter cunhos econômico-sociais e de recordação do ápice à liberdade da intolerância religiosa, o álbum, surpreendentemente, vem com uma sonoridade bem equilibrada e mixada ao ponto de soar, simultaneamente, o máximo de brutal e cru em meio a uma melodia facilmente digerível.
Graças a Eugenio Stefane, Vol. II proporciona ao ouvinte, por entre sua máxima trevosidade e caos, a experiência de ouvir a contribuição de cada instrumento em suas respectivas individualidades. Dessa forma, o profissional acabou salientando outros gêneros pelos quais o Aske transitou durante a execução do álbum, tais como death metal, metal alternativo, heavy metal, thrash metal, metalcore e emocore.
Lançado em 06 de setembro de 2023 de maneira independente, Vol. II é um disco sombrio, cru, sujo, violento e tenebroso. Aqui é onde o fogo se inflama e as rochas que moldam as paredes do inferno se derretem frente o calor incandescente. Com o álbum, o Aske se ajoelha na porta do inferno, reverencia, como um servo fiel e leal, a figura do Satã, e comemora a queda de Cristo e seus ensinamentos falsos e manipulativos.