NOTA DO CRÍTICO
Sete anos depois de anunciar Hawaii, o quinteto chileno Aisles retoma a ativa de produção e enfim anuncia Beyond Drama. O quinto material de estúdio da banda, além de ser o primeiro trabalho após o encerramento do ciclo de seu antecessor, dá sequência ao EP Live From Estudio Del Sur e é o primeiro com Israel Gil nos vocais.
Uma guitarra tremulante, guiada por Germán Vargara, vai surgindo de forma gradativa rompendo o silêncio dormente. Sua estética formada por uma distorção suja e afinação melódica proporciona um aviso de que aquilo que eclodirá será baseado em uma base hardcore fundido em melodia. Eis então que ela, com sua rispidez urgente, encontra um groove trotante executado por Felipe Candia, e uma segunda guitarra cujos riffs desenhados por Rodrigo Sepúlveda exalam gritos sofridamente chorosos. É com essa conjuntura que a introdução sugere sensualidade, rispidez, toques de ousadia e, também, melancolia. Não à toa que, no primeiro verso, essa equação encontra o drama adocicado das notas graves do teclado de Juan Pablo Gaete que entrega uma suavidade tenta desmontar o fundo ríspido que a sonoridade inicial ofereceu. É assim que Israel Gil, com seu timbre agridoce de fundo azedo, respaldado por backing vocals vindos tanto de Vergara e Sepúlveda, completa o quadro que compõe a totalidade de Fast com um inglês bem pronunciado. Tal como obras de Van Gogh ou Leonardo Da Vinci, a faixa possui elementos mais visíveis, como a abordagem da paixão e da ardência da sensualidade, como também termos mais profundos que mostram que aquilo que se nota na superfície nada mais é do que uma metáfora para algo maior. E em Fast, o Aisles dialoga sobre a vontade de acelerar o relógio para se ver livre das dores e angústias de um tempo em que o conceito de fé foi desmontado. De um tempo em que a solidão e a desilusão andaram de mãos dadas. De um tempo em que a angústia tapou a luz do Sol.
Enquanto a guitarra grita agonizantemente, piano e bateria criam uma melodia quase dissonante como base para o surto vivenciado pelo instrumento de cordas. Curioso notar que, quando tal melodia passou a evoluir para algo esotericamente esperançoso, o primeiro verso tem seu início a partir de uma sonoridade amena, como se estivesse sugerindo conforto e uma espécie de segurança para o ato de desabafar. Aqui é onde o ouvinte consegue degustar, de uma forma mais profunda, as características vocais de Gil. Afinal, sem a presença de vozes de apoio, o espectador nota sua afinação adocicada que, de certa maneira, consegue remeter à mesma sensibilidade que Chester Bennington passava quando cantava com sua voz limpa. Trazendo uma interpretação sofrida e dramática, o cantor faz com que a energia da canção também se torne melancólica, mesmo que ela possua um corpo que oferece ligeiras sensações de aconchego e apoio. Com rompantes estratégicos vindos do baixo de Daniel Concha como um personagem que traz consciência e razão em meio à cegueira da dor, Megalomania é uma canção que traz um personagem de coração puro e cheio de sentimentalismos aprendendo a lidar com as dores, com o luto de algo que não aconteceu. É o som de um indivíduo incompreendido que se utiliza de entorpecentes para acessar seu interior para se sentir, mesmo que por instantes, confortável em seu mundo instável, insaciável e incontrolável.
Uma melodia adocicada surge das guitarras. Seu uníssono, porém, consegue oferecer um misto de conforto com desconforto. Enquanto uma traz consigo a melodia da calmaria, a outra vem com uma espécie de som do inseguro. Do desconhecido. É aí que o medo vence o veludo e escoa para uma estrutura melódica sincopada, de feixes sombrios e de base melancólica. Aqui, o timbre agora anasalado e de fundo grave de Gil traz semelhanças com aquele de Rich Luzzi enquanto a melodia vai amadurecendo ainda mais sentimental, sofrida e de melodia chorosa. Thanks To Kafka é uma música em que o personagem lírico encontra o ápice da agonia em um sofrimento lancinante incentivado pelo senso desmedido de culpa. É, surpreendentemente, uma carta cantada de suicídio cheia de desabafos poeticamente doloridos.
Um grandioso power metal surge com generosos mergulhos no campo do rock progressivo. Rush e Dream Theater são algumas das influências inegáveis que se mostram durante a execução da introdução. Explosiva, melódica e em estrutura de jam session jazzada, ela escorre para um cenário entorpecido, exotérico, calmo e doce. Com uma base mantendo a postura igualmente sincopada, Disobedience é a distopia, é o anarquismo de um indivíduo rebelde que deseja, insanamente, mostrar a manipulação que a sociedade exerce sobre aqueles fracos de autoestima. Rotinas, dogmas, regras previamente estipuladas por uma comunidade linear. Disobedience põe o indivíduo em xeque com sua própria essência cômoda ou inquietante.
O ambiente é vazio. Tão vazio que se ouve, de maneira crescente, o eco da bateria preenchendo o silêncio. Quando o teclado entra em cena, o torpor atinge seu ápice enquanto as guitarras vão promovendo um misto de sensações embriagantes e alucinógenas. É como encontrar um ponto de apoio, um lugar onde não existe represália ou julgamento. Um lugar em que o verdadeiro ‘eu’ pode ser exposto sem medo de ser apedrejado. Time (A Conversation With My Therapist) amadurece como um desabafo, como a revelação de algo chocante motivado pela mais profunda tristeza que cega e ensurdece qualquer urgência de racionalidade. Time (A Conversation With My Therapist) é a coragem de expor um ato violento feito de modo inconsciente devido à insanidade instintiva promovida pelo uso desmedido de álcool que motiva um senso desmedido de culpa. E esse sentimento, tal como aconteceu em Thanks To Kafka, leva o personagem lírico a efetuar um ato violento contra si na tentativa de aniquilá-lo e purificar sua consciência.
Entorpecido em sua calmaria contagiantemente embriagante. Com uma inédita maciez que mistura o progressivo com raspas de hard rock, The Plague surge logo densa, intensa e dramática. Entre versos de melodias amenas e de protagonismo quase absoluto do teclado, a faixa tem uma energia exotérica e leve como se fizesse o ouvinte se sentir flutuando. Tal como Fast, The Plague é mais uma canção de Beyond Drama que dialoga fortemente com o legado da pandemia. A dor, o sofrimento, a solidão. A insensibilidade em relação à morte. Porém, conforme o lirismo vai amadurecendo e criando mais corpo, o ouvinte enfim percebe que a faixa é uma crítica afiada perante práticas religiosas e pagãs que se sustentam na manipulação emocional do outro e que comunica uma proteção inexistente. The Plague é também o desabafo de uma mente corrompida de tanta informação que, agora, se vê conquistada pelo ceticismo.
Doce, nostálgica, gélida, fresca e com pinceladas de melancolia. Dramática, as linhas desenhadas pelo teclado sugerem esperança e um aconchego que curiosamente vem do apoio na fé, algo totalmente rechaçado no diálogo de The Plague. De vocal limpo, aqui Gil consegue promover semelhanças com o timbre de Ed Kowalczyk enquanto, entre falsetes bem executados, foge do negacionismo cético e oferece um diálogo ameno, reconfortante e de incentivo à vida, ao enfrentamento dos desafios trazidos pelos dias. Uma motivação em manter a cabeça erguida e não ceder por aquilo que é mais fácil e, sim, por aquilo que é certo. A vida ante a morte. Surrender é a antítese denotativa de Thanks To Kafka e Time (A Conversation With My Therapist).
Com um perfeito efeito de fade in, a música vai gradativamente se apresentando ao ouvinte. Quando Nidsun, um interlúdio sombrio e de lirismo embebido em uma estética doom que narra a chegada aos céus de um ser sofrido, chega ao seu ápice, o progressivo se funde ligeiramente com frases de metal alternativo. Com pouco, a faixa mantém a dramaticidade visceral típica do Aisles. A aglutinação de alguém que precisa de luz.
Como o aviso da chegada de uma carruagem real, a canção oferece seu primeiro horizonte. Crescendo a partir de elementos eletrônicos fundidos em rompantes metalizados, a canção vai desdenhando fundos fantasmagóricos que inserem mais tensão à melodia inicial. De estrutura melódica semelhante àquela desenhada nas canções do Sons Of Apollo, ou mesmo na de Reckless, single da banda fictícia Steel Dragon, Game Over é um instrumental que, propositadamente, cheira a improviso de brisas amorfinadas embebidas em um hard rock metalizado.
Angustiante. Sombrio. Melancólico. Beyond Drama é a inquietação de um indivíduo intenso, profundo, sensível e perdido em sua insaciável mente distópica. Como um monólogo cujo cerne é oferecer a oportunidade do desabafo para tal personagem, o álbum é um produto que representa, de forma fidedigna, a instabilidade emocional de um ser que busca, simplesmente, por um lugar em que todos os seus conceitos de ideal sejam atendidos.
É curioso ver como, nesse processo, o Aisles consegue ser delicado, doce, sensível e intenso ao mesmo tempo em que gera sentimentos negacionistas, céticos e perdidos em uma dor que tira qualquer noção de racionalidade. E é justamente essa falta de capacidade de pensar que leva o personagem lírico a frequentemente pensar e se declarar favorável por atos violentos contra si.
Não à toa que o ouvinte se depara por canções em que o Aisles abertamente dialoga sobre suicídio, mas também de esperança. É justamente nesse ponto que Beyond Drama representa a inquietação e a inconstância emocional do indivíduo. A natureza do ser humano é baseada no enfrentamento de seus próprios medos e inseguranças com o propósito de conseguir crescer, uma atividade nem sempre possível e alcançável por todos.
Para dar embasamento sonoro a tais narrativas, o Aisles contou com o apoio de Angelo Marini. Se dividindo entre as funções de produtor e engenheiro de mixagem, o profissional entregou um material de som maduro, consistente e potente que chega ao ouvinte na forma de uma mistura entre metal progressivo, metal alternativo, power metal, hard rock e raspas tímidas de nu metal. Nesse ponto, inclusive, não é difícil o ouvinte notar influências de nomes como Linkin Park e Papa Roach na estruturação sonora.
Fora a parte do som, Marini foi responsável de amarrar todos os enredos de forma que se combinassem e que surtissem no efeito de algo único e linear. É como se Beyond Drama fosse uma única história narrada em nove capítulos sem que todos possuíssem o artifício verbal.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Jean Pierre Cabañas, ela consiste em um busto dissecado sobreposto em um fundo de estética digital. Repleto de contornos montanhosos ao fundo, somando com a figura do busto, a imagem comunica uma espécie de vazio existencial. É a perfeita imagem de um personagem em busca do equilíbrio de suas emoções, da compreensão de si mesmo e de suas dores.
Lançado em 05 de abril de 2023 via Presagio Records, Beyond Drama é a luta entre a vida e a morte. O enfrentamento entre dor e esperança. É um monólogo de um ser profundo que quer apenas ser compreendido, ser ouvido. Um grito desesperado por alguém que deseja desesperadamente ser perdoado.