Transit In The Ryes - After The Sun Collides

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 4.67 (3 Votos)

Três anos após o anúncio do EP autointitulado, o grupo gaúcho Transit In The Ryes retoma as atividades em estúdio e, após abastecer sua base de fãs com lançamentos esporádicos de singles, divulga After The Sun Collides, seu novo EP. Material é a primeira etapa de um processo que será narrado no decorrer de três anos na forma de dois EPs e um álbum.


Os olhos se abrem em uma espécie de porão rochoso, úmido e penumbroso. Uma rasa fresta de luz ilumina, com muito sufoco, o ambiente, que deixa o corpo dolorido por conta de sua textura áspera e irregular. A curiosidade de saber a origem de tal lampejo luminoso divide espaço com o medo e a insegurança, mas ela se torna mais forte, levando o personagem rumo ao desconhecido. Tendo tal processo acompanhado por uma trilha sonora transcendental e ao mesmo tempo tensa proporcionada pelo sintetizador de Henrik Karlholm, a canção assume ares pacificantes e estimulantes, cuja enigmática sensação de bem-estar põe fim à tensão vivenciada pelo protagonista lírico ao passo que ele vai descobrindo uma fenda que o leva a um jardim florido que lhe devolve o sorriso. Promovendo a mescla do drama e da superação reconfortante, o piano de  Santi Madeira, por vezes acompanhado pelo sonar do hammond recriado pelo sintetizador, acompanha o bailar mórbido-melancólico do suave e agridoce timbre de Karlholm em sua relação com o luto. É aí que Aftershock se evidencia como um produto dramático que narra a superação da dor por meio de um enredo que romanceia a morte, tal como fez Goethe em sua aclamada obra Os Sofrimentos do Jovem Werther. Aftershock, como o próprio nome sugere, é a narrativa dos efeitos de um evento chocante no equilíbrio emocional do indivíduo.


O piano produz um rápido e tímido som aveludado que comunica uma aparente imersão em um campo melódico mais macio e swingado. Por meio da bateria crua de cadência levemente acelerada desenhada por Thomas Gomes, um movimento mais alegre se constrói, algo que é reforçado pela entrada do sonar de instrumentos de sopro, como trompete e trombone, que coloca um frescor reavivante à sonoridade ainda em construção. Misturando elementos do ska com o indie rock, The World’s Not Taking realmente se matura de maneira a prevalecer um sonar swingado, elemento que afasta, ao menos no campo sonoro, a energia fúnebre oferecida em Aftershock. Interessante notar que The World’s Not Taking é a descrição mais fidedigna da forma como aqueles que se encontram perdidos se sentem ao perceber que aqueles ao seu redor não percebem, ou não querem perceber, que está precisando de ajuda. Dialogando sobre a dicotomia da angústia interna e da normalidade do mundo eterno, The World’s Not Taking engana pelo seu ritmo contagiante, pois, em verdade, ela é uma canção que funciona como um pedido de socorro de alguém cujas emoções conflitantes não são notadas.


Uma tocante e tímida valsa promovida pelas teclas do piano insere cores reconfortantes em um cenário de base melancólica. De energia melódico-dramática semelhante àquela de Olhos Vermelhos, single do Capital Inicial, ela é quase como a sonorização do caminhar de um pai segurando as mãos ainda frágeis do filho que, a muito custo, tenta demonstrar seu aprendizado na arte do caminhar. Tendo na companhia do backing vocal aveludado de Madeira como ingrediente a amplificar a dramaticidade, What Do I Do Now? é uma canção que dialoga sobre a solidão associada à raiva de tal situação. Uma saudade dolorida. O medo do esquecimento. What Do I Do Now?, diferente de Aftershock, fala de um luto do presente. Do luto de si mesmo na memória do outro.


Uma melancolia reconfortante, tal como o amornar do edredom em uma noite fria, se pronuncia de maneira a trazer felizes lembranças da estética sonora tristonho-reflexiva de muitas músicas que marcaram a carreira do Charlie Brown Jr.. Contagiante, macia e com corpo presente graças às bojudas frases do baixo de André Silveira, Take Your Time traz consigo uma acidez que a faz flertar, melodicamente, com o post-punk. Agraciada por linhas sonoras que rememoram a melodia de Every Breathe You Take, single do The Police, Take Your Time é, curiosamente, a canção de conteúdo mais positivo e consciente de todo After The Sun Collides, pois ela traz um personagem lírico ciente de sua condição, uma realidade insegura, repleta da ausência de autoconfiança e autovalorização. Ainda assim, o que é interessante é a força emocional do interlocutor em reconhecer tais fraquezas e a postura firme rumo ao cuidado de si próprio. Take Your Time é simplesmente uma canção que narra um personagem que consegue se desvincilhar de seus próprios demônios.


Trazendo uma rápida mistura entre indie rock e new wave, a introdução contagia o público com sua maciez reconfortante e amena. De uma alegria entorpecente, a canção engana o ouvinte no ponto de que o lirismo possui uma energia e uma mensagem que destoam da energia sonora. Change é uma faixa que fala de culpa, de dor, do arrependimento de um passado sofrido. É a descrição de um personagem que, no mais puro cliché interpretativo, não consegue lidar com os fantasmas do passado, o que o tira de seu próprio eixo de equilíbrio. 


Ondas ásperas são avistadas próximo à superfície. A guitarra parece representar algum tipo de estofo ou a voz de sentimentos represados. Quando o personagem lírico, já com sua boca aberta, se mostra pronto para desabafar, é como se o próprio fosse obrigado por um ser onipresente a tomar um medicamento cujo objetivo é acalmar os ânimos. É isso o que a introdução descreve apenas com sonorização, afinal, ela sofre uma quebra energética quando, da aspereza nitidamente raivosa, a melodia escorrega para o mesmo lençol da melancolia. Misturando elementos de um britpop ao estilo Coldplay, The Fall (Symphony Of An Overdue Epiphany) é embebida em uma dramaticidade comovente e contagiante que acompanha o personagem em sua própria dissecação emocional e seu choque em descobrir que ele não é único que sofre e que precisa de ajuda. De outro lado, a faixa é como uma prece em que o interlocutor fala com uma figura divina em busca de respostas para suas lamúrias. Resposta essa que chega, em sua visão, fria e insensível por mostrar que ele não tem diferença entre os outros, pois todos eles sentem, choram e sofrem.


After The Sun Collides é um enredo de texturas, aromas e paisagens barrocas que romantiza o sofrer, o mórbido. O luto. É um trabalho que disseca a melancolia em suas diversas camadas e mostra como a dor, a raiva e o ódio agem de diferentes formas em indivíduos de diferentes maturações psíquicas.


O EP mostra a capacidade do Transit In The Ryes em falar não apenas da dor, mas evidenciar, com uma arte rítmica que encarna até mesmo uma paisagem iluminista, que o luto não é um evento de público pequeno. O grupo mostra que todos os indivíduos, uma vez que são embebidos de emoções, não estão livres da ambivalência energética da própria mente.


A vontade de se livrar dos próprios demônios, o pedido de ajuda, a desistência de si mesmo, o medo do esquecimento. A dor da saudade. São eventos desenrolados com delicadeza, sensibilidade e  humanidade durante After The Sun Collides, um EP que transita entre o indie rock, a new wave, o britpop, o post-punk e até mesmo o ska com nítido conforto. 


Para trazer máxima autenticidade e sinergia lírico-melódica, o Transit In The Ryes contou com a mixagem do próprio Karlholm. Como integrante também do corpo rítmico-criativo do EP, músico e cantor soube como guiar a instrumentação para um lugar em que a essência do trabalho pudesse ser mantida a um ponto que se tornasse até mesmo palpável. E esse foi um grande ato de Karlholm.


Encerrando o escopo técnico de After The Sun Collides vem a arte de capa. Assinada por Isadora Klein, ela comunica o luto, mas também consegue dialogar com a superação. O estilhaçar de um objeto ao chão é o máximo vociferar da raiva e do ódio, um ato de desabafo e extravaso no seu mais alto tom. Eis que as fartas de tal explosão montam uma linha invisível de união que sugere a reconstrução daquele objeto, agora com uma nova forma. E a perfeita metáfora do renascimento, que nada mais é que a superação da dor.


Lançado em 22 de setembro de 2022 de maneira independente, After The Sun Collides é a sonorização do barroco colidindo com o iluminismo. É a relação e a superação do luto. É a autocompreensão das emoções mais viscerais da dor, da raiva, do medo e da saudade. O amanhecer nem sempre é fácil de ser experienciado, mas é ele que sempre traz a possibilidade do renascimento.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.