O Campo - Tatarô

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 0.00 (0 Votos)

Conhecida por ser a capital nacional da literatura infantil, Taubaté, cidade do interior de São Paulo, além de abrigar monumentos icônicos como o Sítio do Pica-Pau Amarelo e o Museu Mazzaropi, agora traz uma novidade no ramo da música. De lá, vem O Campo, banda que se anuncia oficialmente no mercado musical do país com Tatarô, seu primeiro EP.


É como se, em efeito time lapse, a paisagem noturna rapidamente se tornasse dia com o Sol banhando o mar e dourando a areia da praia. Com alegria, frescor, swing e maciez, a canção tem seu início declarado com um tom de curiosas brisas melancólicas. Contudo, a levada da bateria de Mário Gascó e os batuques opacos do atabaque de Danilo Bonato fazem com que o aroma tropical reavivante prevaleça na melodia mesmo quando sobrevoos de uma new wave repentina preenchem a sonoridade durante a introdução a partir do sintetizador de Michel Cruz. Criando uma ambiência transcendental e relaxante, o vocal ameno e quase sussurrante de Bonato convida o ouvinte a viajar nos pensamentos sobre a imensidão do espaço. Tendo tal tema como uma metáfora, a faixa-título é simplesmente a representação da grandeza do amor, da paixão, da sincronia carinhosa entre dois indivíduos. Com harmonias delicadas proporcionadas entre o coro vocálico formado entre Leo Santi ​e Bonato, a faixa-título tem frases reggaes levemente metalizadas que fazem uma escada até seu ponto de origem. Vindas da guitarra de Santi, elas remetem ao reggae-hardrock da Cali e, logo em seguida, se deleita pelo solo tranquilizante de algumas levadas típicas do Charlie Brown Jr.. É verdade que o lirismo tem um quê de psicodelia, mas todo o amor tem seus momentos de viagem extasiante pelo prazer do presente, pela felicidade do momento e pela plenitude da alma.


É como o aviso para a assumição do silêncio completo. O convite à introspecção. O despertar da meditação. Assim faz o sonar indiano e agudo do sitar na introdução de Sem Nunca Mais. Junto aos chacoalhares do caxixi, o ouvinte vai conseguindo abrir portas e entrar cada vez mais fundo no seu próprio inconsciente, um ambiente sonorizado pela mescla da Índia e do Brasil, do povo hindu e do indígena. Algo que ganha ainda mais forma com os soprares agudo-adocicados da flauta. Reafirmando o swing e a maciez trazidos na faixa-título, Sem Nunca Mais vem com um baixo bojudo que, por meio de Murilo Marroco, entrega corpo e base para o compasso do baião construído pela bateria. Contagiante em sua miscigenação sonora, Sem Nunca Mais é de fato um convite à introspecção, ao acesso do inconsciente, à percepção da própria essência. O autoconhecimento é ponto principal do lirismo, que traz o protagonista experienciar algo como se ver no espelho e, ao ver sua realidade emocional, espantar aquilo que aflige e que consome para deixar a alma mais leve e alegre. Não à toa que o interlocutor pede algo que soa como ajuda e salvamento ao dizer “E se possível entrega e gozo virem me levar”.


Com uma melodia construída de forma a evidenciar a influência de Jovem Dionísio no escopo sonoro, a bateria acaba inserindo uma cadência alegre e swingada que remonta o sertanejo universitário enquanto flerta com o indie pop e o synth-pop. Repleta de rimas, Papo De Peixe E Gavião é talvez a canção mais complexa, reflexiva e socio-crítica de Tatarô. Afinal, ela discute os conceitos da fake news, da pureza racial e, ao mesmo tempo, da heterogeneidade que forma as diversas comunidades. 


O timbre aveludado e reconfortante do Fender Rhodes se confunde com o som ambiente. Vozes espalhadas são ouvidas ao fundo criando uma ambiência candomblezeira enquanto o escorrer da água, o tilintar do cowbell e o som seco do chimbau vão formando uma miscelânea de sonoridades. Curiosamente, uma melodia instrumental urbana que flerta com um rap groovado começa a amadurecer gradativamente.  Rio Adentro é a máxima do experimentalismo sensorial, algo que casa com a junção de um dos trechos do poema Tecidos, de Luiz Otávio de Santi. Algo que, de fato, visa criar, amadurecer e expandir a capacidade do sentir. Rio Adentro retrata a união do corpo e da palavra.


Tatarô, apesar de dar sequência ao álbum homônimo de estreia, é um material que nasce três anos depois de seu antecessor. Como primeiro EP do O Campo, ele apresenta um grupo com sede pelo experimentalismo de texturas, de melodias. Um grupo que propõe uma estética lírico-melódica não-convencional capaz de causar a introspecção mais profunda vivenciada pelo ouvinte.


Em suas quatro faixas, O Campo convida o ouvinte por, entre a new wave, o reggae, o hard rock, o pop rock, a psicodelia, o baião, o indie pop, o synth-pop e o rap, a aguçar seus sentidos. A se perceber como indivíduo e como parte pertencente de uma comunidade. Convida a ser grato pela grandiosidade do presente e pela imensidão do universo que te acolhe. Convida a ser humilde por saber que todos sofrem, mas que tudo encontra seu eixo. É por isso que, nele, também se faz presente a ambiência post-rock.


Nesse aspecto, Vitor Hirstch foi peça importante na finalização de uma sonoridade que soasse, no mínimo, transcendental. Visivelmente em sintonia com a ambiência rítmica do grupo, Hirstch consegui entregar um produto de sonorização lapidada, suave e, ao mesmo tempo, alegre.


Fechando o escopo técnico de Tatarô vem a arte de capa. Assinada por Mô Bertuzzi e Gascó, ela traz em evidência uma mochila de aparência xamânica circundada por folhas cuidadosamente posicionadas. Como um círculo, ele tem um centro. E de lá, ele gera energia e vida. Sendo esse o intuito ou não da informação colocada na arte pelos artistas, o fato é que ela comunica essência e o contato com o interior.


Lançado em 10 de outubro de 2022 de maneira independente, Tatarô é um trabalho de extrema sensorialidade introspectiva. O EP, mais que convidar para a imersão no inconsciente, convida o ouvinte a se perceber. A agradecer. E principalmente: a se conectar com a vida.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.