Mattilha - Coração Anárquico

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Com 13 anos de vida, dois álbuns e três EPs em sua bagagem musical, o grupo paulistano Mattilha alça novos voos em seu próximo capítulo. Intitulado Coração Anárquico, o novo EP da banda, se descreve como uma trilogia das fases do coração, além de marcar a nova fase vivida pelo quarteto.


Um rugido sínico unido a uma espécie de chocalho que remete ao chacoalhar da calda de cascavel é ouvido rompendo o silêncio absoluto. De igual maneira, a guitarra de Pedro Quintana invade a cena com um grunhido bojudo que se encaminha para algo de irresistível sensualidade. Junto ao punch fornecido pela bateria de Ian Bueno, a sonoridade se torna delirante e lasciva, recriando a ambiência hard rock dos anos 80. Com nítidas influências de nomes como Whitesnake, Alice Cooper e Smith/Kotzen, a estrutura de Kobra se completa com a entrada das linhas líricas dominadas por Gabriel Martins. Azeda, rasgada, aguda, folgada e ardida, sua voz lembra demasiadamente aquela de Joel O’Keefe, enquanto é um dos principais elementos que faz parte do refrão ser dramático. Repleta de rimas simples, Kobra é uma canção que, imersa em um contexto de decepção amorosa, dialoga sobre julgamento e hipocrisia com muita densidade rítmica.


Sombria e de toques chorosos, a guitarra de Victor Guilherme entra em cena sob um céu acinzentado de maneira a fomentar a mesma energia melancólica transpirada por diversas canções do Charlie Brown Jr.. Com a adesão do aveludado e gélido toque do teclado de Richard John Lintulahti, a primeira parte da introdução logo assume contornos dramáticos curiosamente contagiantes. Misturando referências de Metallica por conta do uso da técnica de trêmulo picking na guitarra, e Survivor, este último com especial menção à sua faixa Eye Of The Tiger, a faixa-título exala um sabor azedo quando atinge seu primeiro verso. De pose mais intimista, a canção, por meio da interpretação lírica assumida por Martins, lembra desde o timbre de Billy Idol quanto a energia de seu single Rebel Yell. Nesse último ponto, muito se deve da participação de pingos sequenciais do teclado, que trazem até mesmo um embrionário boogie-woogie à estrutura sonora. Como primeira balada declarada de Coração Anárquico, a faixa-título traz uma maciez contagiantemente gélida com seu hard rock oitentista que serve de cama para mais um enredo de decepção romântica. Aqui, porém, diferente de Kobra, a faixa explora o término do relacionamento motivado pelo insano senso de desespero que dominava o personagem lírico. A faixa-título é aposta no entrosamento de um laço afetivo infrutífero que levou o indivíduo a conviver com a dor e com a solidão. É a superação das consequências de um vício comportamental prejudicial para a harmonia de uma vida a dois.


Sexy, perigosa e melada. A guitarra que surge no novo alvorecer, com seu sonar abafado, lembra a temática exageradamente sensual utilizada por nomes como Van Halen e Steel Panther. É em tal introdução que, por curtos instantes, o ouvinte consegue perceber claramente o groove súbito e bojudo do baixo de Camilla Rodrigues, que se esvai com tanta facilidade quanto a guitarra e a bateria assumem ditatorialmente o primeiro plano melódico. Ainda assim, Inabalável é a faixa que deixa nítida a presença do instrumento na base rítmica. Entre o grave e a estridência, o baixo dá sustentação para uma ambiência rítmica que se destaca por trazer um regionalismo bairrista a partir da pronúncia de certas palavras ditas por Martins. Interessante notar que, mesmo a faixa-título sendo a verdadeira balada do álbum, Inabalável surge atendendo a dois importantes quesitos: o comercial e o pensante. Com uma melodia chiclete e bem trabalhada, a faixa envolve um enredo que, assim como Kobra, uma obra que se deleita no contexto do julgamento. Envolvido pela opressão de não seguir o padrão socialmente aceito, o personagem lírico se vê na necessidade de se apoiar em sua própria força e persistência para afirmar sua autenticidade, bem como sua essência. É exatamente aí que mora o brio de Inabalável: o de ser um produto que estimula e incentiva o ouvinte a proteger sua verdade, não importando a opinião alheia.


É um material curto, sem dúvida. Porém, com pouco mais de 10 minutos, Coração Anárquico consegue dar seu recado no contexto lírico e o Mattilha, por sua vez, se mostra apto a apresentar seus vários berços musicais na formação de um som autêntico e de gosto retro.


Mergulhado na áurea do hard rock oitentista, o EP se vende como um produto que, melodicamente, explora outras vertentes desse subgênero do rock. Afinal, além do próprio hard rock, o ouvinte consegue notar a presença do glam metal misturado em sua receita rítmica.


Nesse aspecto, Henrique Baboom foi uma importante peça na consagração do Mattilha. O profissional fez de Coração Anárquico um material que se vende com um som potente, maduro e consistente, ainda que em sua esmagadora duração, ofusque o sonar do baixo. Mesmo assim, Baboom cumpriu bem seu papel em fornecer uma sonoridade firme ao EP.


Trazendo o contexto do relacionamento como ponto de partida para os temas de suas canções, Coração Anárquico é, dentro de seu escopo pleonasmático lascivo, libidinoso e sensual, um produto que discute questões importantes de um mundo hiperconectado, pós-pandêmico e pós-Bolsonaro.


O EP instiga o ouvinte a não ter medo de suas próprias identidades e, sim, a ter coragem de se mostrar ao mundo sem se ater aos julgamentos alheios. Essa é uma das liberdades mais buscadas na atualidade, pois ela garante leveza de espírito e um alto grau de confiança no contexto de provação e autoaceitação.


Ainda que o ouvinte note grande influência de nomes como os já citados Van Halen, Steel Panther, Whitesnake, Survivor, Metallica, Alice Cooper e Smith/Kotzen, o estilo de pronúncia de Martins faz com que, inevitavelmente, o ouvinte recicle, em seu arsenal musical, aquela mesma cadência vocal púbere de nomes da cena pop rock brasileira, como Restart e Cine.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Guilherme Kim, ela traz um desenho de cenário pós-apocalíptico em que os integrantes estão transfigurados na imagem de humanos com cabeça de cachorros, formando, assim, uma matilha. Com essa imagem quase remetendo à mitologia do lobisomem, a obra de Kim impute noções de agressão, até mesmo esperança, por conta dos raios solares que penetram, do horizonte, o cenário.


Lançado em 21 de setembro de 2023 via Canil Records, Coração Anárquico é um EP de sonoridade sensual que se vende como um material comercialmente motivacional. Contagiante, reflexivo e melodicamente libidinoso, ele é um EP que bebe da fonte de um subgênero saturado, mas que nunca perde seu brilho, especialmente quando trazido por uma banda de timbre consciente.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.