Mercedez Vulcão - Sem Ar

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 3 (1 Votos)

Abril marca o início de um novo trimestre, um novo momento para 2022. E foi esse período que Mercedez Vulcão escolheu para se lançar oficialmente no mercado musical brasileiro. Feito é consagrado com o anúncio de Sem Ar, o EP de estreia da carreira da artista.


O piano é calmo e tranquilo como uma música ambiente, mas uma música ambiente com a sensualidade carioca do samba. Quando surgem os repiques na caixa da bateria de JC, a canção flui, com a inserção das notas do wurlitzer de Cello Nascimento, para uma sonoridade cuja estrutura traz uma melodia de extrema semelhança com aquela presente na introdução de The Sound Of Fear, single do Eels. Eis então que uma voz de timbre agridoce entra em cena completando o espectro sonoro. É Mercedes Vulcão inserindo um enredo lírico sobre ilusões de amores ao mesmo tempo que transita pelo campo sensual das relações. De estrutura linear, Repartidão é uma música que se tangencia entre o lo-fi e o rock alternativo.


Surpreendente. O despertar da nova faixa é regido por uma melodia enérgica, positiva, animada e até mesmo excitante ao ser estruturada sob a essência grunge de maneira a lembrar a sonoridade introdutória de Wicked Garden, single do Stone Temple Pilots. Com pitadas de hard rock, Apego é uma canção ritmicamente linear e repetitiva que trata sobre a libertação a partir do início de uma nova fase da vida promovida pela maturidade de se desvencilhar do passado. De repente, um novo ingrediente. Na segunda metade de Apego, o lirismo é narrado por uma voz de timbre grave e empostado que cria um contraponto ao agridoce de Mercedez. É Naja White oferecendo versos que narram a entrega, a vivacidade, o consenso, a atração e a intensidade das relações que irradiam adrenalina e libido. Ao cantar o pré-refrão na companhia de Mercedez nos backings, fica claro que a canção trata de frustrações no campo do amor. Por isso, a necessidade da independência do passado.


A união do violão de Luiã Borges e do baixo na introdução forma uma melodia melancólica que remete à sonoridade de Behind Blue Eyes, single do The Who. De leveza estonteante, Azul também traz uma energia que recobra ambiências vindas de músicas do Secos & Molhados. Promovendo uma mensagem da força da união como forma de oferecer carinho e amparo, Azul possui uma dramaticidade latente trazida pelo violoncelo de Digão, um instrumento que assume a função de personagem onipresente, que é rompida pelo amornar trazido pela guitarra slide presente entre o pré-refrão e a ponte para a segunda metade da música. É ela quem, inclusive, despeja um sentimentalismo reconfortante e uma energia que beira o transcendental. 


Ao contrário de Azul, a presente faixa já se mostra mais macia e ao mesmo tempo com um ânimo contagiante. Preenchida pela maciez do fender rhodes de Luiz Zeidan e pelo compasso sedutor da bateria eletrônica, a faixa-título é imersa no campo da música pop ao mesmo tempo que tangencia com o R&B. Na faixa, Mercedez se pronuncia com um vocal mais azedo ao passo que dialoga sobre a falta de pertencimento, um sentimento que leva à solidão, emoção que preenche o interior do eu-lírico. Ao mesmo tempo, na faixa-título existe um diálogo implícito que abrange a selvageria com que a sociedade lida com as parcelas da população que optam por seguir caminhos aquém do conservadorismo preestabelecido. A faixa oferece ainda uma surpresa ao ouvinte, pois quem constrói a ponte é Conspira MC, quem imputa o rap como contraponto rítmico e oferece, portanto, uma cadência letrada mais compassada.


Observar que drag queens estão conseguindo obter representatividade, mesmo que com suas próprias mãos, é uma alegria incontestável e uma amostra de que a sociedade está, mesmo que a passos lentos, no caminho de ser regida pela aceitação e não pelo julgamento. Muito disso está presente em Sem Ar, um EP que enaltece a necessidade do pertencer e do ser amado.


Sob diferentes óticas rítmicas, tais como o lo-fi, o rock alternativo, o grunge, o hard rock, o pop e o R&B, Mercedez Vulcão, assim como fez Mavi Veloso em Travesti Biológica, tenta se firmar no mundo e se posicionar frente uma sociedade que, apesar de caminhar para um cenário regido pela igualdade, ainda se encontra em um estágio regido por julgamento daqueles que não seguem os padrões preestabelecidos pelo conservadorismo social.


Tendo representantes no mundo midiático como Pabllo Vittar e Gloria Groove, o movimento que busca o reconhecimento das drags ganha força com Sem Ar. Afinal, além de Mercedez o trabalho contou com a participação inusitada de Naja White, uma das primeiras drags roqueiras do Brasil.


Mixado por Nascimento, quem também o produziu ao lado de Mercedez e JC, o EP soa bem equalizado em suas experimentações rítmicas que evidenciam a liberdade criativa e oferece um novo panorama à causa drag. Apenas não houve coesão na área visual do trabalho.


Feita por Lilo Arte, o desenho que encobre a capa cria certa discrepância com os enredos líricos dispostos no EP. Afinal, não há ingredientes místicos nem na melodia nem nas letras, mas, por outro lado, a figura de uma jovem caminhando livremente sob o Sol poente representa, sim, o desejo mais puro de ser socialmente aceito e de poder ter uma vida regida por uma liberdade incondicional e livre do medo do julgamento. Nesse ponto, Lilo acertou em cheio.


Lançado em 04 de março de 2022 via M6 Records, Sem Ar é mais um produto que dá seguimento ao movimento liderado por nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove e, no meio underground, por Mavi Veloso. É um produto da diversidade, da representatividade e da imponência daqueles que querem se utilizar do direito de ir e vir. Sem Ar é a emotiva descrição de alguém que quer ser amado e quer ser pertencente do mundo. 

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.