Thays Sodré - Flor Do Destino

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Radicada na Tijuca, a paraense Thays Sodré, depois de dois anos de elaboração e produção, enfim lança seu álbum de estreia. Intitulado Flor Do Destino, o material já chega ao mercado com prêmios. Uma de suas músicas foi reconhecida nos festivais Canção do Rio Bonito e Canção de Bela Vista de Minas.


É doce, fresco e perfumado. É como sentir a pele úmida depois de um mergulho em um rio de águas cristalinas. Como sentir o cheiro puro das folhas serem levados ao vento e aromatizando o ambiente com um cheiro natural. No horizonte, após a imensidão verde, o Sol dá seus últimos clarões, deixando a superfície líquida com um reflexo que chega a parecer um quadro de Vincent Van Gogh. Com sabor do sertão graças ao sonar da viola caipira de Rodrigo Garcia, Sabor Açaí transcende em delicadeza quando o dulçor do sopro do flautim de Marcelo Bernardes sobrevoa livremente a atmosfera melódica. Completa por uma voz forte, de fundo grave e toques nasais vinda de Thays Sodré, Sabor Açaí é uma ode, uma homenagem, uma reverência ao açaí, fruto que representa uma das bases alimentícias da região norte e que é adorada Brasil afora. Notável e tocante é observar como Thays criou um poema sensível e emotivo não apenas sobre as características do fruto, mas sobre o que ele representa à população nortista. “És a planta que alimenta.  A paixão do nosso povo”, declara com sutileza a cantora.


É como observar o Sol nascendo no horizonte, banhando as plantações, o gado e as árvores com sua luz e seu calor reavivantes. É como sentir o aroma do mato, a textura da estrada de terra, o cheiro da madeira e o perfume do café saindo do bule. Todos Cantam Sua Terra é um interlúdio que segue a linha da faixa anterior no que se refere à homenagem e à gratidão. O que antes foi uma reverência ao fruto e à sua importância na cultura alimentar, aqui Thays exorta sua paixão, seu orgulho e seu amor por sua terra de origem. E nesse aspecto, a flauta de Daniel Zanotelli e a viola caipira se tornam os protagonistas melódicos absolutos, entregando delicadeza, aroma e frescor.


O ritmo se agita. A alegria vem dançante, convidando o ouvinte para não pensar muito e entrar na roda. Entre o compasso sambado da bateria de Alex Merlino despejando um swing solar e a união de sopros, Tays, com o auxílio do sorridente sonar dos banjos de Évila Moreira e Letto escondidos na coxia melódica, começa a transformar Carimbó Da Pororoca segue a raiz das canções anteriores e venera a famosa, icônica e turística aparição da Pororoca. Só aí, Thays, sem precisar dizer, informa que São Domingos do Capim, sua cidade-natal, é um dos locais onde a água do mar se encontra com a água doce e onde o lazer tangencia a ousadia e o perigo. Carimbó Da Pororoca é a diversão ribeirinha. É mais uma obra da natureza sendo usada de bom grado pela sociedade.


É serena como uma cantiga de ninar. Tocante e espiritual como um canto candomblezeiro. Delicada e compreensiva como um abraço materno. Com auxílio das vozes de Jhasmyna Thuller e Martha Taruma no coro e as sobreposições vocais, a suavidade generosa, floral e educada da sanfona de Meninão, e o dulçor da flauta, a faixa-título soa como a trilha sonora de uma fábula, uma fábula que, pelo timbre de Thays, poderia muito bem vir da discografia de Maria Gadú. Por entre a combinação do veludo da viola com a tímida estridência do violão, a canção vai crescendo em harmonia, enquanto, com a chegada do swing trazido pelo tilintar do triângulo, o xote vai dominando a cadência rítmico-melódica. Se tornando convidativamente dançante e, ao mesmo tempo, chameguenta, a faixa-título é uma obra de cunho romântico, mas não da forma como se espera, abrangendo o amor entre duas pessoas. O romance e a paixão, aqui, estão embrenhados na arte da vida e na forma como enxergamos o viver. Repleta de altos e baixos, a vida pode mostrar cor, de maneira súbita, mesmo em dias monocromáticos. E é isso que a canção ensina: a entender que a vida é uma obra sem receita, mas que deve ser degustada mesmo em seus sabores mais azedos.


O nordeste entra com peso junto a um pôr do Sol reconfortante. Com seu ritmo macio, aconchegante e exaltando o chamego graças à união da sanfona e do triângulo, a canção fornece um xote suave e demasiadamente sereno. Apesar disso, tal sutileza cristalina traz um quê melancólico e reflexivo. Trazendo um enredo em que um casal é o elo da narrativa, mas não seu foco, Thays faz de Não Vou Sair o retrato do caos administrativo que vive o país e a falta de confiança e representatividade que essa situação traz. Ainda assim, a beleza da canção reside na capacidade de a protagonista conseguir identificar, no além do horizonte, a esperança de dias melhores. Com a proposta certa de um futuro promissor no Canadá ao lado do homem amado, ela é conquistada e subornada pela riqueza natural do Brasil para que dele não desista. Eis em Não Vou Sair a perseverança em forma de narrativa e melodia. 


Macia e swingada, a canção nasce com um notável flerte com a temática do bolero. Com interpretação e entonações semelhantes às de Gal Costa, o vocal aberto de Thays entra em um intercalar de força e suavidade entre o ondular agudo do lap steel e o batucar opaco do bongô de Marcos Suzano. Sensual, Encanto é uma música de melodia curiosamente hipnótica muito graças à acidez do órgão de Isac Hotz, que mistura os contos piratas sobre sereias e o folclore brasileiro sobre Iara, uma personagem mitológica que, na forma de sereia, encanta os homens nas margens dos rios. Não à toa que seu ritmo, junto à perspectiva lírica, faz de Encanto uma obra tão bela que cega os mais fortes alicerces da consciência.


Serena, mas com toques curiosamente sombrios, a canção é repleta, em seu despertar, por um minimalismo estético capaz de criar rompantes tocantes de harmonia. Aqui, o violão de nylon se mistura com as teclas doces do piano de Belluda, criando uma combinação estética inédita em Flor Do Destino. Para Nos Molhar se une diretamente com Não Vou Sair no quesito de trazer um enredo que incita e persiste na criação e apoio na esperança de dias melhores. Para Nos Molhar é a sabedoria, a consciência e a maturidade suficientes de, com resiliência, superar as adversidades da vida.


Sensual e com toques românticos graças à união do violão com o piano, Confissão já nasce com um bolero atraente e sedutor. Repleta de elementos percussivos que vão desde o caxixi de Durval Pereira ao reco-reco, cuíca e conga, a canção é convidativamente rebolante, enquanto, surpreendentemente, seu enredo trata da separação. Enganando o ouvinte com sua melodia sutilmente swingada, Confissão é onde a personagem se conforma de que a separação é a melhor maneira de fazer o outro feliz, mas, ao mesmo tempo, é por onde se afunda em um amor que nunca pôde semear.


O baião vem melancólico, choroso, cabisbaixo. Mesmo apoiado no dulçor da sanfona de Cosme Vieira ​e da flauta, o ritmo vem adornado em uma maciez de teor enigmático, enquanto ganha texturas extras com os tilintares percussivos. Pela malemolência sonora, é possível até mesmo vislumbrar a cantora, enquanto ressoa as palavras no ritmo da canção, se balançar intercalando os braços de cima e abaixo. Contudo, Desilusão não traz consigo um enredo solar ou mesmo alegre. É um produto que, apesar de falar do súbito término de uma história de amor, discute, essencialmente, a superação do abandono e o convívio com as cicatrizes de um coração ferido.


Seguindo a energia entristecida, mas sem qualquer resquício de sensualidade, o novo horizonte vem com um xaxado afiado que tem sua narrativa esboçada por uma Thays de voz aberta e grave. Sendo um ambiente capaz de se degustar até mesmo o corpo grave e de estalos estridentes do baixo, Sertão é o retrato da vida e da personalidade de quem mora na referida região. É uma análise do efeito do clima e da paisagem na essência do indivíduo, um efeito que faz, da comunidade sertaneja, um grupo de pessoas fortes e com um senso de esperança inquebrantável. Um grupo que se afasta do senso de coitadismo por ser firme, consciente, persistente e resiliente.


O dançante volta com alegria. Os elementos percussivos, junto com os instrumentos de sopro, fazem da melodia um ambiente convidativamente swingado graças, principalmente, à sanfona e clarinete. Entre coros que repetem o verso durante o refrão, Tudo É Bom E Nada Presta é um humor debochado que trata, de uma maneira mais simples, de uma interpretação ao icônico bordão político ‘rouba, mas faz’.


Como encerramento da obra, Thays fez da Lenda Da Pororoca um conto musicado. Ao lado do violão, ela mergulha em uma narrativa literária que prende a atenção do ouvinte, que rememora os tempos escolares em que se ouvia a professora fazer contação de histórias. Assim, Lenda Da Pororoca é um interlúdio que, despropositadamente, assume contornos nostálgicos.


Não é apenas o encontro da esperança com a gratidão ou da paixão com o patriotismo. Flor Do Destino é um álbum profundo que, definitivamente, vai muito além daquilo que se conhece como nacionalismo. Afinal, o termo, por si só, indica posturas arbitrárias, autoritárias, repressivas e frias.


O álbum, em sua essência, é onde Thays Sodré consegue exortar sua essência regionalista, sua paixão pelo país e pelos seus recursos naturais e extravasar um senso de agradecimento que não cabe em verbos soltos. Mesmo com tamanha sensibilidade, generosidade e humanidade, a cantora não esconde a consciência perante a realidade de um país desigual.


Ao mesmo tempo em que Flor Do Destino pode ser um bálsamo em relação à terra, à natureza e a seus povos, ele também sabe identificar onde se encontram os pedregulhos a serem retirados para que o caminho do progresso seja menos custoso. Entre a veneração ao norte e nordeste, aos alimentos da terra, às obras naturais da água e à rotina da comunidade ribeirinha, Thays também consegue conferir representatividade ao povo brasileiro quando aborda questões de desesperança, e perda da fé no país.


Para mesclar delicadeza, frescor, natureza, mas também reflexões, Thays recrutou Garcia também para cuidar da mixagem. Com o profissional, o álbum transpirou brasilidade ao fundir xote, xaxado, baião, samba e bolero em uma receita melódica macia, fresca e sensual.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Feita entre Emerson Ferreira e Thiago Araújo, ela consiste em uma fotografia de Thays Sodré que exorta felicidade e, pela sua paisagem, já traz conotações de frescor, algo que é muito presente no álbum. Além disso, coloca a cantora como uma espécie de flor do destino, propriamente dita, uma sereia em busca de direção


Lançado em 10 de novembro de 2023 via Porangareté, Flor Do Destino é um álbum que, na sua mais bela mensagem, apresenta uma artista consciente dos percalços vividos pelo Brasil. Porém, assim como o bordão ‘eu sou brasileiro e não desisto nunca’, vinda da campanha de 2004 da ABAP, ela apresenta uma genuína paixão pelo país e a esperança de que dias melhores virão para agraciar sua pátria.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.