NOTA DO CRÍTICO
Há três anos a ideia do ideal disco de estreia já passava pela cabeça de Lori. Cantora ítalo-brasileira radicada em São Paulo (SP), ela já vem construindo sua carreira na cena da música independente desde 2018 com o single Entregue. Hoje, no último trimestre de 2023, ela enfim dá um grande passo na carreira ao anunciar Cuore Aperto, seu álbum de estreia e sucessor do EP Vênus Em Virgem.
Uma fumaça de cor arroxeada exala do chão, como se o terreno sob os pés do aventureiro estivesse transpirando. Com essa paisagem de caráter místico, pouco se vê do horizonte, mas ainda assim é possível sentir o sabor adocicadamente sintético conforme a sonoridade vai tomando um corpo épico. Através da atuação maestral de Gabriel Nascimento, Roxo Profundo (Intro) é conduzida de tal forma como se fosse apresentar o verdadeiro protagonista em uma valsa deslumbrante e clássica. Eis que uma voz doce em seu tom metalizado, mas de espírito firme, completa o escopo melódico. É Lori transformando Roxo Profundo (Intro) em um surpreendente enredo dramático sobre autovalorização e sobre o efeito de um relacionamento abusivo na lapidação de uma essência ainda pura de sofrimento e decepção. É um aviso, um alerta desesperado para qualquer indivíduo que se sinta preso, pressionado e aquém de sua liberdade de ir e vir. É a culpa da submissão chegando em um momento tardio para o corpo, mas não para a alma, que tem a eternidade para viver em sua plena alforria emocional.
O sonar é de uma doçura ácida e sintética que, trazendo o synth-pop, consegue recriar a ambiência setentista de danceterias noturnas. Narrada por uma voz aguda, quase estridente, a canção tem mesclas de casualidade e uma ligeira impressão de conter uma linha vocal sampleada. Evoluindo para a house music, MD DM ME é estruturada por entre sobreposições vocais em um cenário noturno urbano rodeado pelo consumo de LSD, lança perfume e êxtase. Uma música com apologia à masturbação feminina, que incita a intensidade de uma diversão sem fim e que, ainda, promove um inesgotável e inquietante senso de excitação por ter um teor tão libidinoso que chega a ser escorregadia. MD DM ME é a liberdade da paixão de uma noite, o extravasar. A despreocupação e o tesão.
Muito diferente daquela proteção contra o inconsciente presenciada em MD DM ME, agora Lori se encontra cabisbaixa, pensativa e em um estado quase febril de melancolia. Entre timbres nasais que lembram aquele característico de Anitta, a cantora expõe, em Insegura, sua máxima fragilidade em uma espécie de confissão jogada aos quatro ventos, como uma forma de desabafo. Aqui, é onde questões da assumição de uma falsa personalidade empoderada se encontram com a necessidade de se provar forte em um mundo repleto de brutalidades. Insegura é uma conjuntura de sinais que são ou negados, ou não percebido pelas pessoas ao redor, mas que indicam uma conflitante situação que escancara uma doença emocional que pode ser fatal.
É uma mistura de synth-pop com pitadas de soul graças à introdução timidamente swingada, mas com corpo consistente, introduzido pelo baixo de Noedir Ferrara. De base dançante, Vai Ser Melhor? parece ser como uma continuidade de MD DM ME, pois enquanto na segunda a protagonista se encontrava mergulhada em um sofrimento cortante, na primeira ela já está adornada por considerável força para lutar pela melhoria de seu estado emocional e pela busca da superação dos obstáculos da vida. Na companhia da voz levemente grave e despropositadamente sensual de Natália Carreira, Vai Ser Melhor? ainda traz uma espécie de perigo para a alma por abordar os efeitos nocivos da rejeição no indivíduo. Lidar com a insegurança, com a baixa autoestima e a ausência de autoconfiança pode servir como uma bomba no cotidiano, mas são esses degraus que fortalecem o emocional. Não à toa que, mesmo embriagada na dor, a personagem segue na luta pela continuidade da vida e na esperança de um destino melhor.
Macia, reconfortante e com pitadas sensuais que é capaz de recriar a ambiência de Eu Te Devoro, single do Djavan. Muito disso é possível graças à presença orgânica da guitarra de Lucas Carrasco, que transforma a canção em uma mistura harmônica de MPB, soft rock e soul. Entre sobreposições vocais e um veludo aconchegante, Lori faz de Prision Of My Mind uma obra que dialoga sobre superação, sobre decepção e sobre coração ferido. Ainda que mantendo a nutrição do amor pela pessoa responsável por tais emoções desgostosas, a personagem lírica se percebe na iminência de sentir, conviver e compreender todos os sentimentos que vêm com a virada da página de uma relação desarmônica.
É como entrar no mundo da fantasia, mas sob olhares distantes como se, de alguma forma, só se estivesse observando aquele cenário de beleza sobrenatural. Movida pela maciez sintética emaranhada com uma base rítmica latina a partir do reggaeton, a atmosfera rítmico-melódica consegue trazer ao ouvinte lembranças estilísticas relacionadas a canções como Natiruts Reggae Power, single do Natiruts, e Shape Of You, single do Ed Sheeran, Me Dói, Boy é uma canção convidativamente dançante. No entanto, seu enredo lírico tem ligeiros toques sombrios ao apresentar a história de um personagem imerso em um relacionamento possessivo e regido por indecisões, fatores que bloqueiam o senso de liberdade e autovalorização. Não à toa que, entre a participação do timbre levemente grave de Matias e FBC trazendo também a outra visão sobre o mesmo contexto, o verso mais marcante de Me Dói, Boy é “eu não quero mais te ver, vou seguir com a minha vida”.
A fumaça do incêndio recém-apagado mostra o caos, mas também evidencia a silhueta de uma mulher. Sua face é cansada, mas seus olhos são de uma vivacidade imbuída de uma exortação de resistência e força contagiantemente marcantes. Em meio ao torpor, a personagem de Me Adoro (interlúdio) vivenciou um processo de autovalorização a partir da chegada de um indivíduo que mexeu com suas emoções. Ele a ensinou a se amar no ponto necessário para saber e conseguir amar também ao próximo. A verdadeira superação não apenas da insegurança, mas também de um ferrenho complexo de inferioridade.
Depois de uma narrativa em estilo literário, a canção começa a tomar ares épicos que evoluem para uma ambiência dramática, em cujo sonar do violão remete vagamente à estética do flamenco. De voz empostada, Lori faz de Vieni um tenor de aspecto romântico e tão dramático quanto uma ópera. Uma ópera apaixonante de uma alma aberta para o amor, para a paixão, para o romance mais puro e sincero, mas também um espírito desesperado por aceitação, afeto e o senso de utilidade para com o outro.
Provocante e sensual não apenas pela interpretação lírica, mas também pelo desenho da levada da bateria desenhada pela produção de Nascimento, Disco Time Pt. 1 tem ainda um baixo de groove marcante e encorpado, enquanto é regida por falsetes bem definidos que transpiram uma libido extasiante. Disco Time Pt. 1 é como se a paixão tomasse a forma do efeito do LSD pelo seu embriagante torpor, mas também a cocaína pelos seus sensos de vitalidade e vivacidade. Um interlúdio sexy que, a partir do prazer, desperta um interesse ainda maior pela vida.
Seu início é de uma dramaticidade épica quase disneyresca. Retomando o synth-pop e sua ambiência sinteticamente dançante e setentista estacionada em MD DM ME, Popstar, em seu processo de maturação, apresenta uma cantora sob as verves de um vocal anasalado e fanhoso. É ele que mostra uma personagem imbuída em um falso senso de autoconfiança no intuito de se apossar da arte da conquista. Uma alma solar que deseja, através das artes, ser o centro das atenções e objeto de cobiça.
Aveludado, macio, contagiante e educadamente sensual. É assim que Disco Time Pt. 2 se apresenta ao ouvinte: com um prelúdio de R&B envolto em uma narrativa sexy e sussurrante. Com toques de funk, Disco Time Pt. 2 pode parecer mais uma canção de Cuore Aperto sobre paixão, mas aqui, essa paixão não recai tão somente para uma figura humana, mas, também, para o ambiente urbano, para a noite da cidade grande. Tudo com um instigar e incitar pelo senso de liberdade.
Apesar de estar embrenhada em um ambiente entorpecido, a cadência e a interpretação das primeiras palavras verbalizadas consegue rememorar, na mente do ouvinte, os versos líricos iniciais trazidos por Bruno Boncini em Cala Tua Boca Na Minha, canção da Malta. Choro Na Cama é a sensibilidade do protagonista lírico exposto de maneira completamente transparente, uma demonstração da fragilidade emocional e do fortalecimento, tal como foi mostrado em Vieni, da necessidade do afeto. A percepção de que o outro a quer bem é um fato que a faz se emocionar e se entregar de corpo e alma para a paixão em uma clara exortação da pureza do coração e da hipersensibilidade emocional que formam a identidade da personagem. Choro Na Cama é a gratidão pela reciprocidade do amor.
Ela tem gosto de um interlúdio saudosista e gratificante. É possível, a partir da interpretação assumida por Lori, até mesmo vislumbrar seu rosto banhado por dois que se encontram formando uma única e bojuda veia de água emocional. De caráter nostálgico, Al Mare é uma obra capaz de fazer qualquer um se sensibilizar por seu enredo emotivo e nostálgico que, além de evidenciar a relação pai e filha, mostra um indivíduo buscando seu porto-seguro, seu lugar para chamar de seu, algo que a faça se sentir pertencente. Ao mesmo tempo, Al Mare é embebida em metáforas que exortam a antítese entre a necessidade de independência e a insegurança.
O áudio é intimista, real e caseiro. Ele vem com notas de saudosismo, mas também de preocupação para com o destinatário da mensagem, ilustrando o carinho pelo cuidado. Seu fundo sonoro faz da prece entoada pela personagem não-identificada um verdadeiro mantra que traz calmaria, reenergização e senso de acolhimento. Nesse recorte, é como se Quero Ir Com Você seguisse os mesmos passos estéticos de Al Mare, observação que é amplificada pelo dulçor proveniente da interpretação lírica e pela dramaticidade vinda das sobreposições vocais repletas de melismas. De todas as canções de Cuore Aperto, Quero Ir Com Você é a mais tocante, a mais íntima, a mais delicada e a mais autobiográfica ao trazer uma personagem que viveu um período de vida em sofrimento por não se encontrar, por não se aceitar. Porém, a partir do momento em que ela se percebe, se entende e se enxerga, existe a exortação do desejo para que o outro a aceite como é. Quero Ir Com Você é a trilha sonora do descobrimento e do redescobrimento. É o abrir dos olhos e o pacificante e aliviante autorreconhecimento através da reflexão no espelho.
O início é sintético enquanto aprimora os conceitos de synth-pop. Misturando notas de house music e até disco music, a canção tem uma narrativa inicialmente trazida por uma voz grave. É soul.za ampliando a base excitante e enérgica da canção. Dançante e com misturas de um sutil soft rock trazido pelo sonar digital da guitarra, Introestelar 1.0 é o amor, é a ardência da paixão, é a entrega. É a libido. É a provação. A faixa é como a luta pelos direitos e pelo respeito LGBT na base do amor, uma luta que, segundo os próprios soul.za e Lori, não tem fim.
Ele é dançante, animado, sintético. Ele é capaz de recriar a ambiência dos anos 70 com destreza e a maestria de fazer o ouvinte sentir desde os efeitos de entorpecentes como LSD e lança perfume ao topo da energia pelo resultado da consumação da anfetamina. Cuore Aperto é um álbum que esconde seu verdadeiro norte através de melodias atraentes e sensuais.
Enquanto o ouvinte consegue se divertir, e, por vezes, até se excitar com os enredos líricos de base libidinosa, o álbum está, em verdade, apresentando um personagem escondido atrás de uma carapuça de liberdade, independência, empoderamento e autocontrole. Afinal, em sua veia ardentemente romântica, ele é o retrato que Lori, talvez inconscientemente, quisesse deixar registrado nas entrelinhas.
Transitando com destreza entre os idiomas inglês, italiano e português, Cuore Aperto apresenta um personagem sedento por aceitação, por ser compreendida, amada, querida e acolhida. É um álbum que mostra a essência romântica, sonhadora, delicada e sincera de uma pessoa que, nas profundezas do seu inconsciente, é insegura e não é capaz de reconhecer seu próprio valor. Alguém mergulhado na busca por um lugar, seja ele físico ou não, para se sentir pertencente.
A prova de que Cuore Aperto tem o lado dançante para esconder esse tom de agonia por não se encontrar está na antítese perfeitamente construída entre as canções Al Mare e Quero Ir Com Você. Afinal, elas trazem a fragilidade travestida pela necessidade de independência.
Para conseguir extravasar toda essa gama de detalhes e emoções, Lori se aliou a Nascimento e Kiim Venus. Juntos, os profissionais sintetizaram todo o contexto melódico, rítmico e lirista para encontrar a perfeita sinergia sonora. Foi assim que o álbum ficou com uma roupagem limpa, mas mista. Afinal, nele o ouvinte pode encontrar house music, disco music, reggaeton, funk, R&B, synth-pop, soft rock, tenor, ópera e até mesmo o flamenco.
Encerrando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Janaína Morena, o álbum representa fidedignamente o conceito do romantismo e do amor tão enraizados ao redor de suas 15 canções.Tendo um coração resplandescente substituindo o core corporal, Lori se mostra todo sentimento e emoção, como se pudesse ser a solução para todo e qualquer embate bélico mundial ao despejar amor ao redor do mundo.
Lançado em 10 de novembro de 2023 de maneira independente, Cuore Aperto é a paixão é o romantismo. É a libido. É o drama travestido de entretenimento. A apresentação de uma personagem na busca pela autocompreensão, enquanto tenta lidar com suas inseguranças e fragilidades. É o desejo do pertencimento misturado com a necessidade de ser verdadeiramente acolhida.