Fernanda Ouro - Roda A Saia

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 0.00 (0 Votos)

O fim do terceiro trimestre foi o momento escolhido para que Fernanda Ouro lançasse seu primeiro álbum. Depois de dois singles anunciados ao longo desse ano, Roda A Saia, além de marcar a parceria da cantora com o poeta baiano Jordan Vilas, se desdobra em três frentes, sendo a brasileira, o groove e a intimista.


Ela tem um alvorecer macio e sensual. A partir da extasiante sincronia entre o sonar floral e aveludado do fender rhodes vindo de Felipe Montanaro, a delicadeza com que Léo de Braga desenha a levada da bateria, e o aconchegante riff da guitarra de Johnny Accetta, um R&B irresistível começa a se criar. Por meio desse ambiente entorpecidamente delirante de tamanha sedução felpuda, uma voz de timbre sereno e igualmente sedoso hipnotiza o ouvinte e o leva, inconsciente, pela narrativa de Sonho. É Fernanda Ouro, entre melismas e picos resistentes, funde a MPB de Maria Rita e Elis Regina na receita melódica dessa que é uma canção ardentemente sedutora que retrata a paixão, a saudade, a vontade do toque e o encontro de dois corpos embebidos em um amor recíproco. Curioso notar que a cadência lírica adotada por Fernanda em certos versos e a brincadeira fonética com determinadas palavras recria o mesmo feito executado por Seu Jorge no seu respectivo single Amiga Da Minha Mulher.


O piano surge doce, mas com curiosos repentes dramáticos em seus dedilhares gélidos. Ainda que a atuação de Laura Zacura à frente do cello surta em um sonar tão suave e leve quanto uma pena flutuando na sinfonia do vento, os súbitos graves do instrumento chegam a amplificar a noção de dramaticidade oferecida no início da canção. Quando Fernanda entra em ena, sua interpretação despeja na receita energética noções de uma melancolia nostálgica penetrante que passa a se tornar lacrimal pela caracterização chorosa com que o cello passa a se apresentar conforme a canção se matura. Meu Menino é a perfeita e visceral antítese de Sonho. Uma realidade posta como trágica a partir da separação. É a vontade que o outro fique bem, mesmo que, por dentro, o próprio sonhador esteja com coração ferido. É a desistência de uma vida em conjunto sem a chance dos reparos e das retóricas. Um triste cristal que se quebra ao ver o reflexo se dissipar e se tornar uma paisagem vazia.


É como a brisa do vento em um entardecer de outono. Seus uivos assobiantes ecoando pelo escampado. Uma percepção confortavelmente bucólica passa a caminhar pelas esferas sensitivas do ouvinte, que se vê tomado pela doçura criada entre o violão sete cordas de Arthur Scarpini e a voz serena de Fernanda. Seu canto onomatopeico, muito lembrando as firulas líricas comumente executadas por Ana Carolina e Gilberto Gil, acaba fazendo com que aquele ecossistema campestre se mature em uma espécie de mantra até que o veludo toma forma e começa a ser verbalizado. Mantendo aquela mesma sensualidade aveludada e educada de Sonho, Composição é uma espécie de valsa na forma de um jazz abrasileirado em que existe uma sincronia romântica estruturada entre os trechos de dueto entre a cantora e Pironi, que proporciona um tempero sutilmente grave à maciez quase entorpecente. É assim que Composição, novamente bebendo da mesma fonte inspiracional de Sonho, traz o romance, a libido educadamente sedutora e sensitiva que, a partir da somatória de palavras nos versos, metaforiza as práticas da paixão na presença do calor.


O solo percussivo do atabaque, feito por Nay, faz as boas-vindas ao novo ambiente. Solitário e, portanto, ecoante nesse inicial vazio infinito, os batuques fazem o ouvinte se sentir em uma espécie de roda de umbanda. Ao súbito chacoalhar do chocalho, a canção tem seu verdadeiro início com a entrada das linhas líricas. É nesse momento que, com a participação de outros elementos percussivos, como o tilintar do agogô, ao lado do suave e dançante violão, uma interessante mistura de samba e frevo é construída na melodia. A faixa-título surge como um dança de veneração à figura materna, à sua importância na formação do indivíduo e ao legado de seus ensinamentos. A canção é simplesmente uma coreografia exaltando a gratidão.


A paisagem é chuvosa, cinza, gélida. Ainda assim, ela é delicada como o ato de um cristal sendo lapidado. A união do piano com o violoncelo acaba criando um estranho senso de conforto em meio à tristeza que emana da sonoridade. Com a entrada da flauta transversal de Mariana Oliveira, com seu sopro singelo e de aroma floral, a delicadeza atinge outro patamar e transforma a energia de Fluxo Do Mar. Como uma canção que soa como um personagem ajoelhado na beira da cama de mãos juntas em forma de prece lançando desejos ao infinito, a música é como uma continuação linear de Meu Menino. A saudade do passado associada à dor de um coração partido. É a tentativa da superação do sofrimento através da assimilação de que a vida é como a maré: imprevisível, instável e, por vezes, devastadora.


Sereno, ele soa como o vento fazendo os galhos das árvores cintilarem enquanto suas folhas se desprendem e camuflam o chão. Doce, mas mantendo a energia melancólica da canção anterior, o violão surge em uma tristeza reflexiva e de olhares fixos para um horizonte ofuscado pela neblina. Dramática pelo ressonar grave do violoncelo, Voa, com auxílio do canto empostado de Fernanda, assume a forma de uma cantiga de libertação. É o estímulo à liberdade perante a imersão do autoconhecimento e à coragem de deixar fluir as emoções guardadas no peito, mas, principalmente, à bravura da autoaceitação.


Com uma alegria tímida, mas já perceptível em seu movimento levemente acelerado e animado, o violão propõe uma ligeira fuga da tristeza, um sentimento já tão investido em canções como Meu Menino, Fluxo Do Mar e na energia melódica de Voa. Assim como em Composição, Fernanda retoma seus cantos onomatopeicos em um ambiente agora fresco e de ligeiras sensações de maresia. Majoritariamente calcada na estrutura voz e violão, Caso O Acaso Queira tem um lirismo que, de início, faz o ouvinte pensar ser uma nova interpretação sobre o romance e o primeiro momento em que a chama do amor se acende. Porém, com o passar do tempo, a faixa se mostra como a relação do personagem com o senso de justiça e com a coragem de lutar pelos seus direitos de liberdade de expressão. “Jus a todo ser”, deseja com delicadeza o sujeito lírico.


Ela se inicia em uma espécie de jam session cambaleante até se firmar, por meio de uma guitarra suave, em MPB. Ao som refrescante e relaxante do pau-de-chuva ao lado do suave e encorpado groove do baixo de Lucas Vieira, a canção, em adesão ainda ao veludo do sonar do fender rhodes e à levada jazz da bateria, acaba se maturando, na chegada do refrão, em um samba de veneração. Sou Mulher, com seu título sugestivo, é a exortação à figura da mulher, à sua força, potência e resiliência. Rebolante, a canção é pura e simplesmente um hino em prol da luta pelo lugar ao Sol. É a figura do feminismo em busca de igualdade e, principalmente, respeito.


O bojudo e curiosamente sensual groove do baixo faz a vez de abre-alas do novo horizonte. Com a entrada de um instrumental composto por piano, bateria e o sonar do wurlitzer, a melodia se torna um jazz com pitadas soul cujo protagonismo recai sobre a acidez do próprio wurlitzer. Realmente com pose animada, divertida e contagiante, Poema Seu é outra interessante descrição do encontro dos corpos na sinfonia do amor. É a entrega, o prazer, a sensualidade e a cumplicidade. É o desejo. É, tal como Sonho, a silhueta ardente do romance.


É amaciado e confortável. O MPB desenhado sem demora pelo violão, se torna tão convidativo quanto a aveludada, mas alegre, interpretação de Fernanda. Ganhando sensualidade através da levada da bateria e um ecossistema R&B a partir da fusão entre o sonar felpudo do fender rhodes e a igualmente macia caracterização da guitarra. Transbordando uma igual veia MPB, Universo Do Teu Olhar é, assim como Composição, Poema Seu e, em menor grau, Sonho, é a libido, é o prazer. É a entrega. É o torpor da reciprocidade e o êxtase do gozo. É mais uma canção que brinca com as palavras na formação de metáforas que levam às práticas do amor.


É um trabalho que explora texturas. Roda A Saia é um produto que pode ser sensual, delicado e dramático, mas também motivacional, inspiracional e dramático. É um álbum que disseca as emoções da libido, da alegria, do amor, da reciprocidade, mas também da tristeza, da saudade e da melancolia.


Não à toa que Fernanda Ouro faz com que o ouvinte se sinta em diferentes ambiências a cada mudança de canção. Por meio do álbum, o espectador caminha pelo frescor da brisa do vento, se depara com céus acinzentados e chuvosos, se percebe em rodas candomblezeiras e se nota entre quatro paredes deitado em uma cama à espera do êxtase corporal chegar.


É por isso que Roda A Saia transita pelo amor e pelo prazer de diferentes maneiras. A partir desses dois temas, é possível dissecar seus prolongamentos emocionais, fatores que são muito bem estudados durante as 10 faixas que compõem o álbum. Como um disco às vezes precisa ser verbal para dar vida às suas histórias, Fernanda surpreende por dominar certas habilidades.


Com uma voz doce e serena, mas conseguindo comunicar força, ela brinca entre metáforas e onomatopeias, fazendo de seu trabalho um estudo pelas figuras de linguagem. Tal ato não deixa de ser um grande trunfo, pois em muitos momentos, a cantora diz sem dizer e sente sem diretriz.


Com o apoio de diversas texturas que levam o ouvinte do macio ao grave, Roda A Saia teve Adonias Jr. na função de engenheiro de mixagem. Por meio da sabedoria do profissional, o álbum destacou as ambiências do jazz, do R&B, do soul, do frevo e da MPB que transbordam de suas faixas com verdadeira versatilidade.


A produção, por sua vez, ficou a cargo de Gabriel Cassaro. Atuando como um diretor eloquente, Cassaro fez do álbum um caminhar pelas emoções do amor e da experimentação quase transcendental da paixão, do prazer. Ainda assim, conseguiu direcionar Fernanda para que o mesmo feito fosse alcançado quando a energia ficava mais densa e tristonha.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Guga Ferri, ela é autoexplicativa. Trazendo Fernanda Ouro nas vestes de um vestido vermelho que parece tanto como a vestimenta do tango quanto da dança do candomblé, a obra, capturada em superexposição de luz, vem com a imagem de Fernanda tremida e replicada. O efeito dá a sensação de transcendentalidade, mas também de singelos toques místicos, cooperando, assim, com alguns dizeres do álbum, principalmente nas canções que exploram legado e gratidão.


Lançado em 21 de setembro de 2023 de maneira independente, Roda A Saia é o amor, é o prazer, é a libido, o êxtase, a sedução. É um disco que explora as sensações antagônicas da máxima felicidade e da tristeza visceral. Um material que, além de ser contagiante em suas texturas lascivas, consegue ser forte em seu papel de exortar a força e a coragem da mulher.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.