Anis de Flor - Fértil

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Apesar de ter quase uma década de carreira, a catarinense Anis de Flor, figura que já abriu as apresentações de nomes como Liniker E Os Caramelows, adquiriu a realização de um disco solo somente agora, no final de 2022. Intitulado Fértil, o álbum de estreia da cantora mistura o afro e a brasilidade.


Uma sincronia onomatopeica traz maciez em forma de uma espécie de mantra na introdução. Sem a companhia de som instrumental, a união das vozes dá um palato agridoce à melodia que se constrói. Aos poucos, elementos percussivos são introduzidos por Alegre Corrêa de forma sutil no intuito de desenhar a cadência rítmica, a qual ganha lampejos opacos com as ondas embriagantes da guitarra. Silêncio súbito. Felizmente, ele logo é rompido por um vocal afinado e aberto que, trazido por Anis de Flor, possui timbre aveludado que remete àquele de Gaby Amarantos quando esta canta de maneira limpa. Entre o djambe de Dessa Ferreira, caxixis, atabaques, bumbos e coros onomatopaicos, o swing toma conta da ambiência sonora de Quente, uma música que fala de expressão, que dialoga sobre o limite do autoritarismo. Uma música que coloca o ouvinte na pele daquele que foi sugado até sua última gota de energia em prol de algo que não lhe condizia respeito e, muito menos, adoração. Refletindo sobre a escravidão em todas as suas esferas e, inclusive, em sua atualização temporal, Quente se deleita no afrobeat para acessar a origem africana que molda um Brasil fundido na cultura luso-indígena. 


É curioso, mas o coro vocálico entoado a partir de sobreposições vocais entre Flor e Marissol Mwaba sugere muito mais do que simplesmente um canto solto ao vento. Ele imprime noções de força e empoderamento, detalhes que se aprimoram e tomam fôlego com a inserção encorpada e bem posicionada do baixo de François Muleka. Não por acaso, a interpretação vocal de Flor vem carregada de um senso desmedido de presença e imposição enquanto dá à Solta um lirismo sobre liberdade, mas não tão somente. A faixa fala de autoconfiança, amadurecimento e, por fim, autoconhecimento.


O amanhecer vem em toques generosos de dramaticidade através da interpretação sutilmente melancólica de Flor, a qual, acompanhada de notas chorosas do piano de Sam Samuka, tem um aroma de decepção. Porém, o corpo rígido do baixo traz a personagem para o lado racional, esquecendo tal aparente sofrer. Visceral e recheada de melismas, Forte é uma música de enredo literário que, mais do que superação, fala de perseverança. Tal como o nome sugere, a música apresenta uma personagem que, mesmo atingida pelas adversidades da vida, se mantém erguida, imponente, equilibrada e, consequentemente, inabalável. O retrato fidedigno do foco e da determinação. Com traços de soul trazidos pelo groove do baixo, Forte ainda é agraciada pelo contraponto de doçura trazido pelo vocal em evidência de Marissol.


Entre o swing amaciado do samba e da MPB, Flor convida o ouvinte para, na faixa-título, refletir sobre o senso de ingenuidade como sinônimo de pureza de espírito. Da ausência de maldade e de malandragem. Ao mesmo tempo e de maneira mais sobressalente, a faixa-título fala da força e das ambiguidades do amor.


Tão logo e sem chance para respirar, Grande já mostra seu poderio reflexivo-crítico social. Tratando do conservadorismo e da intolerância em relação às diferenças e da insegurança que isso causa, a canção embala o ouvinte com seu aparente minimalismo instrumental. Cheia de elementos percussivos de presença tímida, mas cruciais na construção da cadência rítmica, Grande, assim como Solta, também convida o ouvinte a imergir no autoconhecimento.


Não é apenas um trabalho experimental. Fértil é um álbum que, apesar de curto, é repleto de fortes conteúdos líricos que convidam o ouvinte a pensar a origem do povo brasileiro, o respeito, a espiritualidade e, principalmente, a se conhecer. É um produto que se vende pela percussão e conquista pela leveza com que propõe seus temas líricos.


Entre o afrobeat, o samba, a MPB e mesmo o soul, Fértil pensa o respeito, a intolerância, a insegurança e, ao mesmo tempo, tem o dever de estimular o senso de empoderamento não apenas feminino, mas socialmente geral. Essa tarefa ficou ainda mais certeira com o auxílio de Paulo Lahude, quem, por meio da mixagem, mergulhou fundo no cerne do legado do álbum.


Com sua atuação, o disco conseguiu ter uma sonoridade que unisse brasilidade com um sangue africano que remetesse não apenas ao senso de origem, mas acessasse inclusive uma noção espiritual através do legado desse povo que ajudou em demasia a colonização e a regimentação do que o Brasil é hoje.


Nesse caminho, Ferreira foi aquela pessoa que mostrou o caminho tênue entre o entretenimento e a crítica. A reflexão e a musicalidade. Com ele, Fértil se consagrou como o perfeito equilíbrio entre rechaço e introspecção no que tange as reflexões sobre si e sobre a sociedade.


Por fim, a arte de capa passa por sintetizar toda a mensagem do álbum no âmbito visual. Assinada entre Trindadead, Isa Souza e Leo Saconatto, ela deixa em evidência, por meio do rosto encoberto de Flor, da noção do fértil, do florescer. É como a metáfora da metamorfose, da transformação. É como o desejo de evolução exposto pela sutileza do vislumbre da polinização. Da nova beleza que chega para abrilhantar o jardim.


Lançado em 30 de setembro de 2022 de maneira independente, Fértil é um trabalho rápido, mas longo no que diz respeito ao seu legado sociocultural. É um álbum que discute o emocional ao mesmo tempo que dialoga com a noção de origem. Ele pensa no espiritual e na hereditariedade cultural enquanto critica os desvios na evolução do senso de comunidade calcado na igualdade.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.