AFI - Bodies

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Desde que seu álbum autointitulado foi lançado, quatro anos se passaram. Porém, após esse hiato de atividades de estúdio, o A Fire Inside, ou AFI, como é mais conhecido, finalmente retorna com um novo trabalho. O intitulado Bodies é o 11º disco de estúdio do grupo californiano.


Um ecoante, gutural e ao mesmo tempo áspero como o vento batendo pelas paredes de pedra das cavernas é sentido e percebido. Os golpes da bateria, acelerados como ricochetes de morcegos vindos da escuridão começam a mostrar mais da personificação da faixa. Quando Davey Havok assume posição com sua voz aguda, Twisted Tongues acaba por construir a imagem de um levante, de um grupo de homens armados pronto para a batalha. É curioso como o timbre vocal de Havok faz o ouvinte reciclar em sua memória o tom de cantores como Jared Letto, Chris Johnson e, em menor grau, com Ryan Key, sendo que apenas um deles é expoente da vertente punk. A melodia é majoritariamente amena, com guitarras em riffs suaves sem distorção e grooves compassados sem excesso de peso. O lirismo, por sua vez, exala um controle e uma consciência admiráveis ao trazer a indignação de, na visão do personagem lírico, um mundo que regrediu e os impactos disso nas pessoas. Um ambiente socialmente pobre e comunitariamente egoísta.


Assim como em Twisted Tongues, é Adam Carson o responsável de, pela bateria, puxar a introdução. Fluída e sutilmente acelerada, a melodia que começa a ser desenhada flerta com aquela estruturada em Rebel Yell, single do Billy Idol. Assumindo um misto de limpidez e aspereza superficial, a música segue com a máxima da amenidade apresentada na faixa anterior. Porém, em Far Too Near, Hunter Burgan assume relevância significativa ao imprimir, com o baixo, groove, corpulência e cadência extra para esta que é uma canção que exala o conceito literário de melodia. Seu refrão chiclete repleto de frases reflexivas como “Give my heart to you, if I could” sugere a angústia de ver o sofrimento alheio que se exacerbou na fase do êxodo migratório ilegal em virtude das guerras e, agora, as mortes desenfreadas pela Covid-19. Com levada punk, mas sem um tom de agressividade, Far Too Near assume um caráter social e humanitário com sua letra que preza o amor ao próximo e a solidariedade.


Swing e groove unidos na mesma medida pelas linhas do baixo, instrumento que assume protagonismo absoluto e indiscutível na canção. Guardadas as devidas proporções, é quase como a recriação do ambiente rítmico formado em Billie Jean, single de Michael Jackson. Rodeado de sensualidade, Dulcería apresenta Havok com vocal baseado em falsetes que apresentam, sob a metáfora do açúcar e do vício em doces, a realidade inerente à pornografia infantil e ao uso de drogas. Uma crítica ao ambiente marginal dos grandes centros que, aqui, ganha roupagem mista de synth-pop com indie.


Baixo e bateria dominam a cena. Uma cadência estimulante e levemente acelerada se forma. O ritmo enfim se torna linear, mas com sobrevoos de um sentimento nostálgico e transcendente proporcionados pelas notas pontuais e aveludadas do sintetizador de Jade Puget. No que tange o lirismo, On Your Back segue a tradição de trazer temas densos. Aqui, por sinal, a base do iceberg é o amor, o ato de carinho, mas na sua profundidade está o estupro, a agressão. O puro desamor. E a mensagem deixada é que, mesmo nesses momentos, sempre haverá alguém zelando pelo agredido.


O eletrônico se funde ao pop. Eis que se forma o chamado synth-pop. Esse gênero domina a base melódica. Porém, há nela um toque ofuscantemente sombrio. Um ar gótico abraça a harmonia que é desenhada em Escape From Los Angeles, uma faixa que funciona como uma descrição da vida noturna da cidade dos anjos. A letra não possui peso reflexivo ou aborda temas incessantemente densos, focando somente na questão de liberdade de ação oferecida e proporcionada por um dos municípios mais populares da Califórnia. 


Mesmo que rapidamente, a linha do baixo criada na introdução possui uma linearidade e cadência que a assemelha com aquela criada por Mike Dirnt no despertar de She, single do Green Day. Sem muita demora, Havok entra em cena com um vocal encorpado lembrando ligeiramente o timbre de Morrissey. É assim que ele apresenta ao ouvinte um tema gótico que tange o encontro com a morte e os rituais póstumos ao acontecimento. Em Begging For Trouble, o relacionamento com a morte é trazido de maneira romantizada.


Uma atmosfera sinistra se forma no horizonte. Medo e calafrios tomam conta do ouvinte a partir de uma voz onipresente que perambula pelo ar. Assim como em Begging For Trouble, Back From The Flesh é uma música sobre morte. Mas diferente da anterior, não há romantização. Há sim uma espécie de synth-gothic na melodia que dá à harmonia uma noção fantasmagórica. Afinal, na canção o eu-lírico pede apenas para ser amparado na hora que o desligar do corpo chegar.


Guitarra distorcida em tom alegre. Bateria em groove simples, mas em sincronia com a energia emanada pelas seis cordas. Em Looking Tragic, uma levada pop punk estimulante é fixada na base melódica que atrai e não repele. A letra, por sua vez, é leve, coloquial e até mesmo jovem. Mas o tema merece atenção. Afinal, nele o AFI critica o vício em pânico, o medo desenfreado e até mesmo, de maneira inconsciente, aborda o efeito das fake news. Visto esses fatores, a faixa é uma forte candidata para single de Bodies.


Protagonismo do baixo. Linearidade. Compasso. É como se fosse recriado a new wave europeia dos anos 80. Isso é o que, em uma melodia ao estilo The Smiths, Death Of The Party oferece ao ouvinte. De refrão repetitivo e versos curtos, o lirismo segue, mesmo que sob outro ponto de vista, a trilha de morbidez criada pelas canções Begging For Trouble, Back From The Flesh e Looking Tragic.


Guitarra em distorção e bateria aos golpes nos pratos. Mesmo assim, não há peso. Existe uma fresta de ânimo, uma possibilidade de alegria esperando ser estimulada. Se dividindo entre o pop punk e o rock alternativo, a melodia de No Eyes serve de roupagem para um lirismo saudosista e nostálgico. Uma homenagem àqueles que se foram. A faixa reafirma, ainda, a capacidade de o AFI criar refrões estimulantes e chicletes.


Assim como Back From Ther Flash, o que se tem como cartão de visita é uma energia sinistra. Uma expectativa masoquista toma conta do ouvinte conforme as notas graves da guitarra são proferidas. O lirismo de Tied To A Tree parece atingir o ápice do sombrio. Afinal, sua camada mais visível aborda o amor além-vida, mas sua esfera profunda trata do homicídio causado por um amor platônico. Curiosamente, a música apresenta o refrão de estrutura mais épica do disco a partir das sobreposições vocais.


Apesar de o álbum anterior ser referido pelos fãs como o ‘The Blood Album’, é Bodies que possui as melodias mais mórbidas e os lirismos mais densos. É verdade que o som que permeia o álbum transita por vertentes do rock mais alegres, como o pop punk e o rock alternativo, mas a veia do álbum é uma espécie de synth-gothic que é recheado de uma morbidez onipresente.


No disco, o que foi feito pelo grupo californiano foi a recriação do ambiente new wave europeu. Mais do que isso. O AFI conseguiu fundir o synth-pop ao gótico e tornar diversos temas densos acessíveis às massas. Tudo através de um vocal bastante afinado e músicos sincronizados entre si.


E nesse aspecto, a mixagem de Tony Hoffer tem grande mérito. Afinal, é através dela que o ouvinte consegue sentir um misto de sensações que vão desde o medo e calafrios, até torpor e alegria. Por conta disso, se torna possível colocar Bodies no mesmo patamar dos trabalhos lançados pelo The Cure.


Lançado em 11 de junho de 2021 via Rise Records, Bodies é um disco liricamente denso e melodicamente mórbido. Mesmo pincelando o pop punk, o sinistro que perambula pelos alicerces sonoros não é suavizado.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.