Kult - Chama

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Inspirado no Soneto De Fidelidade, poema de Vinícius de Moraes, o cantor mineiro Kult, batizado Max Souza, deu nome ao seu terceiro EP. Intitulado Chama, o material tem a proposta de mostrar que as relações amorosas são rodeadas por emoções surgidas no decorrer das interações oferecidas pela vida.


Os sonares eletrônicos sugerem um misto de maciez e dulçor contagiante. Tendo ainda grandes doses de frescor e uma delicada sensualidade, a canção é adornada por sonares de guitarra que sugerem um sutil flerte com o soft rock, enquanto Kult entra em cena com seu timbre grave e uma cadência lírica rappeada. Responsável por entregar texturas mais orgânicas, a voz do rapper consegue oferecer, inclusive, toques regionalistas com seu sotaque confortavelmente mineiro e faz, de Princípio, um abre-alas sobre o amor e a paixão. Como uma faixa alegremente atraente, ela propõe uma reflexão na forma como os relacionamentos se dão. Propõe refletir nas atitudes, na valorização dos pequenos detalhes, no aproveitamento máximo do tempo, no decifrar de cada silhueta e marca do corpo. Princípio é a fusão de intensidade com delicadeza e respeito. Um tangenciar de tesão com paixão imbuídos na sabedoria da satisfação mútua.


Começando já com um clima sedutor como trilha sonora de um diálogo propriamente narrativo, a faixa logo comunica a simetria entre duas vozes que representarão dois lados de uma mesma situação. Ao lado de Kult, uma voz grave, mas feminina, entra no escopo melódico. Mac Júlia, com um timbre que muito rememora a voz de Pitty, ajuda a fazer de Meio uma canção que mostra um protagonista sem coragem de assumir a relação e sem a capacidade de valorizar aquela que está ao seu lado. Porém, Meio é onde ambas as partes do casal se mostram intensas e impulsivas em suas maneiras de justificar a chama da paixão. Por vezes apenas carnal, o entrosamento empobrece e, como o próprio Kult sugere, “pecamos por excesso ou exceções, justificando o meio, o fim”.


O céu é repleto de um tom de cinza desencorajador. Melancólico e entristecido, ele deixa o ambiente terreno em um estado profundo de torpor, mas incapaz de cancelar a tristeza que assola o peito. A fina chuva que escorre pelo gramado e se acumula em pequenas poças é como a culpa, o remorso por tentativas não assumidas e por palavras não ditas. É assim, chorosa, dramática e cabisbaixa que Fim nasce. Regida pelos backing vocals de Luiz Brasil e Thaís Moreira entregando um extra de sensualidade em relação ao ritmo curiosamente swingado, a faixa apresenta um Kult parafraseando em duas ocasiões dois dos versos de Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha De Sapê), single de Hyldon, enquanto o personagem é invadido por um senso de conformação inevitável do fim. Curiosamente, Fim tem uma boa noção de consciência e reflexão a partir dos questionamentos do protagonista sobre as tentativas de manutenção de algo já desfigurado. Ainda assim, a canção tem um quê tocante quando o protagonista segue abraçado por uma esperança sincera de reconciliação, mesmo estando aprofundado na tristeza da quebra da parceria da paixão.


É como estar sentado, com os pés-descalços no balanço das marolas, em uma pedra a beira-mar, observando a infinitude do horizonte. Pensamentos vem e vão em uma velocidade imensurável. A tristeza se confunde entre felicidade, gratidão, esperança e comicidade. Um turbilhão de sentimentos dissincrônicos tirando a noção de sensatez e lucidez. Com o sonar macio de uma guitarra delicada e um compasso rítmico igualmente amaciado, Reticências exala um frescor timidamente swingado que carrega, como uma continuação linear da esperança de Fim, a possibilidade de um recomeço. Na companhia do delicado backing vocal de Thaís, Kult se percebe lidando com a culpa de atos feitos e com a saudade de alguém ferido por ações mal-calculadas. Reticências é, portanto, uma canção repleta de angústias e agonias fomentadas pela dúvida de um indivíduo refém do peso da própria consciência e adicto da dúvida de se um reatar é algo realmente possível e cabível. No fundo, a pureza do seu desejo suplica por um novo capítulo. Não à toa que o protagonista verbaliza “prefiro reticências, boas histórias pedem continuação”.


Ela traz um princípio de ânimo entre os swings proporcionados por sonares eletrônicos. Fresca, mas não tanto quanto Princípio, a faixa vem acompanhada de um leve toque de soft rock em meio ao pop moderno. Ainda assim, o que salta aos ouvidos em Date é sua base reggae, sua energia descompromissada e livre de qualquer problema e, principalmente, a maciez fluida com que convida o ouvinte para percorrer um cenário leve. Leve pelo clima descontraído e leve como o vivenciar de sexta-feira à noite. Date é o retrato do encontro programado de última hora, aquele improvisado, sem regra, sem receita, mas construído pelo ímpeto do momento. A obra é a composição mais serena, fluída e organicamente cativante de Chama, afinal, traz uma essência pura de entretenimento, de curtição, de mutualidade de interesses.


Ele tem, sim, faixas que representam o começo, o meio e o fim do relacionamento. Apenas por esse viés, Chama seria o relato da vida de uma vivência amorosa, do seu nascimento à sua morte. Porém, ele trata de outras coisas que permeiam tal convivência. O EP é a representação da felicidade, da culpa, da tristeza, mas também de uma esperança viciante na ideia de recomeço.


Divertido e leve, mas também conseguindo ser dramático e sofrido, o material se aprofunda entre as consciências de uma convivência já insustentável, mesmo perante as tentativas de manutenção de sua estrutura de saudabilidade e, inclusive, as puras e tocantes declarações do desejo de prosseguir ao lado da pessoa amada.


É indiscutível, porém, que o que fica de memória de Chama é a energia libidinosa e provocativa de Princípio, além da fresca Date, com sua energia contagiantemente descontraída e divertida. A música, por sinal, funciona como uma entrelinha entre o meio e as reticências de uma relação, afinal, ela traz uma mistura da descontração do fervor do namoro com as inconscientes tentativas de manter firmes os alicerces desse mesmo laço afetivo.


Colocando Brasil também na função de engenheiro de mixagem, Kult proporcionou ao EP transcender o rap e abraçar, também, roupagens estilísticas do reggae, soft rock e do pop moderno. Isso garantiu ao trabalho frescor e leveza na medida de deixá-lo radiofonicamente atraente, mas não comercialmente apelativo.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada entre Joyce Santos e Lucas Mota, ela apresenta Kult sentado em um banco em pleno centro de um rio de água corrente segurando um bouquet em chamas. A partir daí, a imagem sugere diversas interpretações, mas as que saltam à sensibilidade é que as flores flamejantes simbolizam tanto o luto pelo término quanto a ardência e a libido do relacionamento. A água, por sua vez, traz a fluidez e, portanto, representa a reticência, a possibilidade de recomeço, a continuidade da vida. E o cenário de natureza simboliza a pureza dos sentimentos, sejam eles bons ou ruins.


Lançado em 01 de dezembro de 2023 de maneira independente, Chama é um EP que caminha pelos momentos bons, intermediários e tristes do relacionamento. Sempre com um viés esperançoso pelo recomeço, o material transpira a culpa, mas também comemora as alegrias e as diversões que uma paixão sincera pode causar.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.