Fael - Questão De Tempo

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Três anos após se lançar no mercado fonográfico nacional com Aqui E Agora, seu álbum de estreia, o gaúcho Fael retorna ao estúdio para compor um novo capítulo em sua carreira. Intitulado Questão De Tempo, o EP nasceu a partir da junção de faixas compostas desde o ano de 2010.


É como sentir o perfume das flores flutuando através da evaporação do orvalho ao contado com os primeiros raiares de luz solar no amanhecer. O horizonte, ainda que enigmático pela sua gradativa revelação, dá ares de grandeza e infinitude. Sua grandeza e sua beleza peculiares deixam o ouvinte na pose de um ser onipresente, apenas reverenciando a vida despertando para uma nova aventura. Curiosamente, o dulçor proporcionado pelo sonar agudo e gentil do sintetizador trazem uma semelhança energética com a melodia exortada pela guitarra de Mark Tremonti no amanhecer de Ghost Of Days Gone By, single do Alter Bridge. Junto a ela, uma voz de timbre igualmente doce e com requintes de gentileza e educação começa a preencher a linha lírica. É Fael dando transformando a canção em um produto de cunho motivacional que visa a superação. Ainda que em sua primeira fase introdutória, Setembro já apresenta uma maturidade extrassensorial marcante, pois com a entrada da guitarra de Cezar Tortorelli, cujo riff oferece uma adorável sensação de alegria, ela se transforma em algo profundamente solar. Com uma cama delicada trazida pelas notas compassadas do piano, a canção ainda é agraciada pelo sobrevoo tocante do sonar de violinos que desfilam compaixão no ambiente e pela sutileza com que o violão surge amplificando a harmonia. Não é de se espantar, portanto, que Setembro seja quase como uma ode à capacidade visceral do indivíduo em enfrentar suas dores e alcançar a superação de suas aflições. Enxergar no amanhã a oportunidade de recomeço não é algo fácil, por isso que a atitude do protagonista é admirável. Afinal, ele encontra plenitude ao entender que o sofrimento não leva a caminho algum. Definitivamente, Setembro é a motivação que faltava para que o espectador entendesse que a vida merece uma segunda chance.


Um sonar adocicacadamente ácido vem inserindo o ouvinte em um ambiente que cheira a new wave. Entre versos vocálicos esvoaçantes e uma guitarra sutilmente áspera, o beat em cadência 4x4 chama a atenção pela sua velocidade, a qual, apesar de não tão acelerada, apresenta um contraponto interessante para com a levada lírica inicial. Surpreendentemente, na chegada do primeiro verso o cantor fica apenas na companhia do referido beat e do baixo, instrumento esse que, sob comando de Giancarlo Gaudio, assume notável protagonismo. Com um groove seco, mas sutilmente áspero, o instrumento é o responsável por trazer um elemento mais orgânico à canção e, também, puxar o ouvinte de volta à razão. Crescendo em excitação através dos curtos e rugosos riffs da guitarra, Pelas Ruas repete a métrica da canção anterior ao se desenvolver harmonicamente no refrão com a inserção de sonares do teclado. Contagiante e denotativamente atraente, a canção possui um enredo lírico cuja essência é uma continuação linear àquela presente em Setembro. Afinal, aqui o protagonista ainda lida com a superação, mas busca, por entre as visitas em locais significativos do passado, o fim do senso de culpa por algo que desencadeou em um rompimento efetivo certo relacionamento. Não à toa que, após tal constatação, o personagem soa mais leve e com a mente mais serena enquanto em contato com as lembranças do ontem.


 Uma nova roupagem é apresentada. Apenas voz e violão fazem a função da estruturação da melodia inicial. Entre acordes de um dulçor melancólico e um vocal cujo timbre agora soa mais fanhoso e aposta na experimentação de falsetes, a canção gradativamente crescer partir de sobreposições vocais que a levam ao seu ápice. Estourando em um momento de maciez e um misto de nostalgia e melancolia, a faixa-título traz o tempo como um personagem real e tátil, assim como vez Allan Loeb no roteiro do longa-metragem Beleza Oculta. Na presente canção, portanto, o substantivo assume a função de protagonista ao ser ele, um indivíduo mítico e onipresente, o senhor do destino e, para o contexto da canção, o acelerador do envelhecimento. Na faixa-título, o coadjuvante descobre ter vivido de forma superficial e se perdido em algum momento a ponto de não saber mais quem é. Nesse processo, o ouvinte ainda acaba se convalescendo e se sentindo representado, também, pelo sofrimento de tal personagem. Afinal, quando o tempo passa, a nostalgia de tempos de alegria e plenitude esplêndidas chega a causar dor no coração, mas é também a dor um sentimento que fortalece a alma. Por isso, o tempo, mesmo sendo também um capataz, nas palavras do próprio Fael, é ele também o senhor da sabedoria.


Ela é doce e gentil, mas existe também, nela, a impressão de que, no interior de sua essência, exista um sentimento de decepção há muito tempo represado. Sua levada é serena, mas densamente melancólica, ainda que consiga contagiar o ouvinte com seu movimento de fácil degustação. Não apenas pelo minimalismo, mas também pela forma como a voz de Fael se pronuncia, a canção assume ares folks cuja sensibilidade que transcende da melodia leva o ouvinte para locais sertanejos e de energia amplamente bucólica. Na estrutura de uma balada reflexivo-melancólica, São Tomé apresenta um personagem mergulhado na decepção para com a fé e que, por isso, se apresenta ausente de qualquer alicerce onipresente que possa reconfortá-lo e acalentá-lo nos momentos de dor. Com requintes de raiva e até mesmo desgosto, o personagem ainda se questiona quanto ao próprio merecimento para receber o auxílio de uma figura mítica religiosa. É por isso que ele acaba se mostrando um ser cético, dominado apenas pela razão e, portanto, negando o lado sentimental.


Ela é de uma harmonia estranhamente tocante. Desenhando, no horizonte, uma paisagem reenergizante que desfila esperança, a introdução passa para um verso delicado, doce e gentil, regido somente entre voz e teclado. Curiosamente se assemelhando de maneira bastante sutil com a melodia de Como Eu Quero, single do Kid Abelha, Eu Não Nasci Para Ser Herói traz um personagem dando importância aos sentimentos e se lamentando por não conseguir ser mais forte que a dor, ainda que o amanhecer traga a oportunidade de recomeço. Também tendo singelo parentesco estético com Sail Away, single do Armored Dawn, Eu Não Nasci Para Ser Herói ainda é repleta de sentimentos mistos de agonia e angústia vividos pelo protagonista que se vê decepcionado consigo mesmo por não responder às expectativas dos outros em relação a si. Eis então que a canção surge como um ultimato: ou o personagem se apega à própria força para vencer as dores, ou se deixa afundar na zona de conforto do sofrimento e se apaga da vida gradativamente.


É como assistir à chuva de dentro do quarto. Ajoelhado na cama e apoiado no batente da janela, a imagem da água dos céus, que cai para além do horizonte infinito, fica embaçada pelo volume de lágrimas que brotam dos olhos cabisbaixos e cansados do sofrer. De céu cinza, o tempo e as colorações da paisagem molhada amplificam os sensos de melancolia que assolam o personagem. Ao olhar para o lado, o travesseiro está posicionado no meio do colchão. Assim que o pega, o impulso é o de dar um abraço forte e apertado, fazendo com que, sem culpa ou qualquer tipo de controle, o choro ganhe uma vida descontrolada, umedecendo desde o seio da face à fronha. Apesar de as notas do piano serem dotadas de uma sequência linearmente ondulante, assim que acompanhada do violão ela torna a melodia ainda mais tocante e gentil. Com direito a uma guitarra sutil e a inserção de sonares de violino que servem como véus envolvendo espiritualmente a alma em sofrimento, Cosmonauta é uma canção reflexiva e mítica que representa o desejo do retorno a lugares e momentos desprovidos de preocupação ou mesmo dor. É na faixa que Fael explora, também, conceitos bíblicos sobre a origem e o futuro da humanidade, contrapondo, não bruscamente, ao ceticismo exorbitante presente em São Tomé. Em sua essência, Cosmonauta procura mostrar como o egoísmo para com nossos próprios sentimentos nos faz esquecer não apenas do outro, mas de construir novos momentos que, no futuro, também seriam motivos de saudade e adoração. Curiosamente, os versos finais da canção indicam que o personagem foi agraciado por requintes de consciência quanto à sua condição, lhe fazendo perceber o que a vida lhe oferece e, a partir daí, o tornando grato tanto a ela quanto ao destino.


É um EP extrassensorial. Gentil, delicado, educado, doce e compassivo, Questão De Tempo convida o ouvinte para mergulhar, junto com os personagens, em ambientes e cenários que oferecem reflexões sobre a vida, sobre a dor, sobre o amor. Por vezes motivacional, o material tem, em sua essência, um caráter motivacional que busca fazer o ouvinte perceber e entender seus próprios sentimentos.


O produto não leva o espectador a apenas discutir a parte teórica. Afinal, cada melodia delicadamente ofertada foi capaz de dar a lição prática de seus ensinamentos sem nem precisar fazer o ouvinte se levantar da poltrona ou tirar os fones de ouvido e tomar um rumo aleatório. Não. Como primeiro e grande passo, o EP mostrou que respeitar e compreender a dor é o início do caminho para a verdadeira superação.


Por meio do desfile de sentimentos mistos de nostalgia, melancolia, decepção e culpa, Questão De Tempo ensinou que a alegria, sozinha, não consegue fazer o indivíduo crescer. Ele precisa da tristeza para fazê-lo dar valor ao que se tem e ao que não tem. Para fazê-lo entender que ninguém é dono do destino e que o tempo segue seu curso, conferindo ao próprio indivíduo a consciência ou a culpa pelo seu melhor aproveitamento, ou da ausência do mesmo.


Mixado por Leonardo Braga, o EP transita por gêneros por vezes desconexos, mas que, sabidamente bem trabalhados, se completaram no oferecimento de sensações intimamente ligadas a cada um dos seis diferentes enredos apresentados. Nesse processo, o ouvinte percebe o indie, o folk, a new wave e a psicodelia juntas na missão de fazer valer o ensinamento do material.


Além de bem equalizado, o EP, agora graças à contribuição de Tortorelli na produção, conseguiu mostrar e salientar uma maturidade de composição por parte de Fael. Um crescimento que o fez ter coragem de reviver o passado e colocar seus conflitos íntimos em melodias que falam por si e que acabam, consequentemente, representando o mesmo caos de diversas pessoas espalhadas ao redor do mundo. Afinal, independente da índole, todo o indivíduo tem coração.


Fechando a parte técnica, vem a arte de capa. Assinada também por Fael, ela consiste em uma mandala que dá destaque ao símbolo do infinito, como uma perfeita descrição da continuidade da vida. Repleta de cores em tons místicos, pastéis e quentes, a obra tem uma divisão como se indicasse o ontem e o amanhã. E no meio deles, versos escritos retirados das canções do EP metaforizando os ensinamentos e percepções obtidas quando deu-se voz à sensibilidade.


Lançado em 18 de janeiro de 2024 de maneira independente, Questão De Tempo faz as lágrimas surgirem de supetão em diversos momentos, o EP é uma aula de crescimento espiritual e de superação, mesmo que transite por ácidos momentos de puro ceticismo. Motivacional, ele é um produto doce e generoso, cuja bondade que reina em seu interior quer ver o indivíduo pleno, livre de sofrimento e agradecendo sempre pelos diversos raiares de Sol nos infinitos amanheceres que a vida ainda irá oferecer.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.