Giovanna Moraes - Para Tomar Coragem

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Pouco depois de oito meses do lançamento do álbum ao vivo Giovanna Moraes No Estúdio Showlivre, a paulistana Giovanna Moraes dá um presente de Natal antecipado para sua base de fãs. Intitulado Para Tomar Coragem, o novo material é o primeiro álbum de estúdio desde Direto Da Gringa.


Uma melodia mais soturna.suja e distorcida surge moldando um horizonte de um embrionário caos. Em meio à valsa áspera da sobreposição de guitarras de Thommy Tannus e dos golpes precisos e sujos da bateria de Andé Dea, Giovanna Moraes surge com uma interpretação vocal entorpecida tal como se estivesse sob o efeito de morfina. Ainda assim, seu timbre funciona como a voz da conformação, da seriedade e da desesperança. Repleta de groove e pressão, Clichê é marcada pela equilibrada mistura do grunge e do metal alternativo de maneira que torna possível identificar referências ao som criado pela Pitty em seu início de carreira. Com direito a um refrão excitante, enérgico e contagiante, Clichê é a representação de todos aqueles que deixam as emoções represarem no interior com medo do hipotético resultado de suas respectivas exposições. Com evidente tom desabafo, como se estivesse expulsando sentimentos negativos, Giovanna ainda dialoga sobre identidade e pertencimento em meio a uma sociedade padronizada e amplamente conservadora.


Continuando com o tom grave e distorcido, a melodia agora traz a mistura do post-grunge com um pop punk de energia mais densa e soturna. Combinando o sombrio com uma base contagiante, a introdução se revesa entre explosões melódicas e estimulantes com frases mais sisudas e contraídas.Trazendo um intenso swing, No É No é uma canção de harmonia arrepiante que, novamente imbuída de um refrão estritamente contagiante, fala sobre respeito ao meso tempo que critica o sexismo e o machismo.


A guitarra base surge grave e solitária. Sua feição é fechada e sua voz é calada, mesmo tendo muito a dizer e extravasar. É como se ela estivesse decepcionada consigo mesmo por não ter força e autoestima suficiente de expor seus pensamentos. Contudo, conforme a bateria vai se inserindo de maneira crescente em que sua frase acelerada e repicada leva o ouvinte para um ambiente explosivo, excitante e cuja melodia é dominada pela guitarra solo de Lucas Trentin, essa desconfortável sensação de ausência de empoderamento começa a se dissipar. Mesmo que a sonoridade pop rock traga repentes melancólicos, Como É Bom Escolher descreve a realidade da hiperconexão e da influência das redes sociais na vida cotidiana. Contudo, entre uma base firme e densa proporcionada pelo baixo de Chris Duvoisin, Giovanna se vê livre para criticar não apenas a manipulação midiática em relação ao que deve ser consumido e ao consumismo em si, mas traz, nas entrelinhas, um rechaço sobre a ausência de autoestima e do fraco senso de identidade e individualismo das pessoas, o que as tornam facilmente enganadas e atraídas pela mais pura futilidade. Como É Bom Escolher é, inclusive, uma exploração da ingenuidade comunitária em tempos de excesso tecnológico. Assim como Clichê, outro importante single de Para Tomar Coragem.


É com groove e corpo que vem o alvorecer do novo cenário. Regido pelo baixo, a sonoridade, ao ter a companhia da bateria de groove linear, começa a desenhar paisagens calcadas em um indie rock com notável pressão extra. Fluindo para um refrão de estrutura rítmica mais amena que a das canções anteriores, Caixa De Pandora fala do desejo, da provocação, da admiração daquilo que é proibido com perceptível sensualidade. Ainda que Clichê e Como É Bom Escolher sejam faixas fortes em melodia e em lirismo, a conjuntura de Caixa De Pandora lhe confere um apelo popular maior, o que a torna um cartão de visita radiofônico do álbum.


O horizonte forma um crepúsculo de tons rosados. Uma maciez e uma sensação de plenitude dele se oferecem ao ouvinte. No entanto, a garoa fina deixa o visual um tanto opaco e o véu que dele se forma evoca emoções dicotômicas de melancolia. Nesse ínterim, Giovanna entra em cena respaldada por uma guitarra de riff ameno e linear. Em tom que sugere consciência e reflexão, mas que sonorizam um olhar fixo e ao mesmo tempo vago enquanto observa  o cenário, Caminho Em Curvas vai se mostrando uma canção introspectiva e minimalista que dialoga sobre o tempo, sobre maturidade, sobre aprendizado. Fluindo para um post-grunge misturado com rock alternativo, Caminho Em Curvas também fala de superação enquanto oferece uma cadência lírica que faz com que o ouvinte lembre da estrutura de Pense Em Mim, single de Leandro & Leonardo. Até o presente momento, pode se dizer que Caminho Em Curvas assume o posto de balada soturna do disco.


A cadência já vem levemente acelerada e com maturidade precoce. Exalando melancolia e nostalgia, a melodia de Tempo Que Não Volta Mais mostra cedo um parentesco enérgico com aquela atmosfera chorosa de Piloto Automático, single do Supercombo. Discutindo sobre o tempo, as memórias, a saudade, o arrependimento, as vontades não feitas e as expectativas não atendidas, Tempo Que Não Volta Mais é marcada pelo dueto emocional, melancólico e agridoce estruturado entre Giovanna e Tannus, momento em que o romance se transforma em lágrimas que escorrem ao assistir reprises de um relacionamento sem a confirmação da produção de novas temporadas. Quando Tannus assume o protagonismo vocal durante a segunda metade da canção, o choro, a dor e a raiva se confundem em um olhar inflamado de lágrimas que expelem todo o ódio adormecido pelo torpor de uma saudade que cala, mas não consente. Se Caminho Em Curvas foi uma balada soturna, Tempo Que Não Volta Mais acaba sendo a balada no sentido mais estrito da palavra, mas com a adesão de exalar uma energia melancólico-nostálgica intensa.


Um falsete bem executado faz com que a nova melodia amanheça acompanhada de uma suave e flutuante guitarra ao fundo. Se por um lado Tempo Que Não Volta Mais retrata a saudade de um relacionamento romântico, Te Quero Tanto, por meio de uma levada de rock alternativo  que refresca ao ouvinte uma sonoridade ao estilo Foo Fighters, fala da sedução e da inclinação que a personagem lírica tem em repetir as mesmas atitudes que um dia a fez sofrer. E aqui, tais iniciativas recaem sobre um relacionamento anterior, aparentemente abusivo e unilateral, que é capaz, por entre súbitas imersões no campo do pop punk, de promover uma espécie de romance fomentado por um desejo masoquista. 


Suja, áspera, mas ainda assim melódica. Trazendo uma mistura de pop punk e hardcore a partir de uma sonoridade acelerada, Seja Você, assim como Clichê, fala de autenticidade, originalidade e estimula um senso propositadamente excessivo de identidade enquanto questiona a homogeneização social e comportamental que leva à identificação do indivíduo a partir de um rótulo já preestabelecido. Com drama e sede por mudança, Seja Você ainda é marcada por versos de impacto como “eu quero mesmo é te comprar pra revender”, “preciso rotular você” e o verso enfático “nada se cria, tudo se copia”. Seja Você é simplesmente uma canção de rechaço à cultura da imitação estimulada, principalmente, pelas redes sociais. É, inclusive, uma canção de alarde para uma questão endêmica de falta de personalidade das novas gerações.


A bateria vem acelerada, levemente suja e cadenciada. Quando a guitarra entra em sintonia com o vocal, uma forte energia melancólica começa a pairar pelo ambiente ainda que preenchida por uma sutil distorção. Curiosamente, de melancólica a atmosfera se embriaga por uma chuva de pétalas sonorizadas por uma espécie de sonar de correntes se abrindo. Adornada por um tom pastel no plano de fundo, a paleta de cores colorida que sobressai ajuda na criação de uma paisagem que acompanha uma personagem que, finalmente, se vê livre da memória de relacionamentos passados e infelizes e disposta a experienciar uma nova e positiva realidade do amor. Com aroma de imaturidade e ingenuidade, a faixa-título é um fidedigno exemplar da levada pop punk no que se refere à melodia ao conteúdo lírico e à interpretação que Giovanna oferece. Cativante, a canção chega a conquistar os ouvidos com sua leveza e fazer o ouvinte torcer pela personagem lírica durante a percepção de plenitude e felicidade no afeto.


Cadenciada, levemente melancólica e sob um terreno misto entre rock alternativo e indie rock que relembra a sonoridade de nomes como Snow Patrol, a canção segue a leveza instituída na canção anterior e proporciona feixes de uma luminosidade reconfortante enquanto o diálogo lírico vai encontrando sua maturidade. A partir de uma ponte stoner rock, Vai Que Você Gosta se torna contagiante em sua estética melódica pop punk que acompanha a narrativa de uma menina marcada por uma personalidade imprevisível, perigosa e instável. Alguém que transita entre a paz e o caos com versatilidade, mas que ainda assim encanta pela autenticidade. 


Com Para Tomar Coragem, Giovanna Moraes atingiu seu apogeu. Como uma adolescente em processo de maturação, a carreira musical da paulistana encontrou maturidade com o presente trabalho. Afinal, o álbum é sonorização do momento exato em que Giovanna percebe sua própria identidade.


Soando mais solta, mais confiante e mais confidente, a cantora proporcionou ao ouvinte um material com a máxima autenticidade, originalidade e, principalmente, personalidade. Se sentindo em casa ao se ver rodeada por guitarras distorcidas e uma bateria mais presente, Giovanna lidou com temas não apenas de cunho juvenil como relacionamentos e assuntos atrelados ao amor.


Em Para Tomar Coragem, um dos principais assuntos acaba sendo a própria percepção da essência, da individualidade, de quem se é. Além de trazer fortes menções de empoderamento, há discussões sobre respeito, autoconhecimento, pertencimento e o afloramento da sexualidade.


Nesse processo, as melodias transitam entre o indie rock, o grunge, o stoner, o metal alternativo e o pop punk. Todos muito bem sintetizados e equalizados pelas mãos de Thommy Tannus, quem, também assinou a produção, um campo que proporcionou ao ouvinte a percepção de delicadeza, suavidade e sensibilidade, mas também força, presença e maturidade.


Outra coisa que chama muito a atenção em Para Tomar Coragem é que ele não é um trabalho de conquista e maciez crescente. Ele já começa potente, forte e com um poder de atração irresistível. Exemplo disso é a dupla Clichê e No É No, que dá início à tracklist. Como É Bom Escolher, Caixa De Pandora e Seja Você são outras canções que dão ainda mais pressão ao álbum, que também é agraciado por baladas e levadas intimistas como Tempo Que Não Volta Mais e Te Quero Tanto


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinado por Ariel Jaeger, ela consiste em uma fotografia que, para muitos, pode soar agressiva. Com fortes referências à icônica obra de Chris Bilheimer usada na ilustração de American Idiot, álbum do Green Day, a obra apresenta uma mão ensanguentada segurando um coração. Basicamente, ela representa a força, a sensibilidade, a postura e, principalmente, a essência do indivíduo. E Para Tomar Coragem é simplesmente a consciência da força interior e do reconhecimento de si.


Lançado em 16 de setembro de 2022 via Maxilar, Para Tomar Coragem é a virada de chave. É a transformação. A metamorfose do experimentalismo para o amadurecimento de uma personalidade underground que se encontrou no terreno fértil, imponente e rebelde do punk.



















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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.