Lúbrica - Descompasso

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Apesar de já contabilizar cinco anos de vida, o Lúbrica, quarteto formado no centro da capital paulista, somente agora, no último trimestre de 2023, anuncia seu primeiro material. Intitulado Descompasso, o EP teve sua pré-produção e sua gravação realizadas nos idos de 2021.


O chiado vem como ingrediente protagonista nos primeiros instantes. Junto à audição de uma conversa descontraída entre amigos, ele fortalece o conceito do caseiro, do garagem, do cru. Conforme a guitarra de Diego Lucon vai assumindo seu posto com um riff de tonalidade macia, mas embriagantemente entorpecente e nauseante, de forma a, por meio de seus dedilhares capazes de transmitir uma ambiência melancolicamente praiana, comunicar ligeira influência do Red Hot Chili Peppers. Não é difícil, portanto, perceber requintes de psicodelia na movimentação do instrumento, que segue solitário em seu sonar orgânico, apenas na companhia de vozes cruzadas. Mari e Joana é um prelúdio que comunica a descontração, mas também a sincronia e a familiaridade existente entre o quarteto, mesmo que, instrumentalmente, apenas a guitarra tenha assumido seu posto. Cheio de torpor e melancolia, a faixa serve como um importante prato de abertura para um banquete que já se mostra intensamente cósmico em sua languidez reconfortante.


A bateria de Rafaela Antonelli é quem puxa a melodia com um golpe preciso, mas pouco estridente na caixa. A partir dela, a guitarra, seguindo sua energia estafada de Mari e Joana, logo é acompanhada por um baixo que, no comando de Nath Pollaris, vem em um tom que fica no limite entre o grave e a estridência, mas ainda assim, entrega bom corpo à melodia em construção. É com um indie rock quase soturno que Nos Passos traz, na voz de timbre delicadamente grave de Gabriel Felipe Jacomel, um curioso enredo que, apesar de interpretado de maneira suave e contagiante, é repleto de angústia. A vida e a rotina podem ser desgastantes a ponto de fazer o indivíduo perder o brilho, o gosto pela vida e, até mesmo, se perder de si. É aí que Nos Passos vem com a mensagem do autoconhecimento, da reconexão com a própria identidade a partir de um ato de esbravejamento na ânsia de recuperar a esperança de que dias melhores virão. Dias que, a partir da sinergia calmante do dueto criado entre Jacomel e Lucon em momentos pontuais, promovem a feliz sensação de tranquilidade tão desejada pela necessidade de plenitude.


É como faíscas colocando pontos de súbita luminosidade na escuridão. Nesse momento, Jacomel entra com uma interpretação que explora contágio, sutileza e curiosos toques de sensualidade despropositais. Soturna de forma  a soar quase cortante, a melodia, por meio do groove linear e sádico do baixo, deixa a ambiência cinzenta, mas com luminosidade de uma artificial calmaria reconfortante. Hey Girl é como a narrativa da descoberta da verdadeira sexualidade, a percepção da real atração e da sensação de bem-estar consigo mesma. Com uma crescente a ponto de tangenciar a estrutura rítmico-melódica com aquela de Boys Don’t Cry, single do The Cure, é possível perceber toques de uma tímida new wave em meio a um ainda mais suave frescor post-gótico.


O baixo vem gordo e com uma movimentação contagiante que transforma o breu em um curioso clima de festa. Conforme a guitarra vai imprimindo acidez e a bateria, precisão, o ouvinte tem essa festa como uma confraternização de teor esquizofrênico. Afinal, por mais que haja uma sintética diversão, ela esconde a loucura e a insanidade guardadas a poucas chaves no interior de cada participante. Entre uivos com base em falsetes, Jacomel dialoga sobre anulação. É interessante perceber que tal diálogo, por também abordar o conceito de individualidade, tangencia com o discurso do polímata francês Gustav Le Bon no que se refere à sua teoria da identidade social. E é nessa loucura do não se encontrar que mora a angústia do personagem de Pixels.


A guitarra vem com uma intonação soturna, triste, cabisbaixa. Mesmo na companhia da bateria, do baixo e do vocal, a melodia se mantém em um grau de melancolia generosamente saliente, de forma a fazer de Ladeiras uma afirmação do bem-estar mórbido perante o estado de solidão. É uma faixa que traz um personagem em um momento de profunda introspecção e reflexão, que precisa de espaço para pensar, para sentir. Para ser sua mais árdua emoção. Por mais que a necessidade por espaço choque os outros por perceberem a necessidade do outro por ajuda, é necessariamente o momento de exclusão que promove a reconexão com um eu perdido em algum lugar nos confins do inconsciente emotivo-carnal. Não há pressa para se reencontrar. Não há pressa para se reconectar. Por essas razões é que os versos “esperei tanto e tão além” e “só sei ser só”, são definidores do enredo de Ladeiras, uma faixa que ainda apresenta uma inconsciente brincadeira fonética entre as palavras pronunciadas.


Como EP de estreia, Descompasso é intenso em sua melancolia, convidativo em sua reflexão e cortante em seu torpor. Triste, cabisbaixo e pensante, o álbum é um convite para que o ouvinte possa olhar para si e observar se o que vê é agradável. Afinal, às vezes nossas imagens refletidas podem representar nossos próprios demônios.


Languidamente reconfortante, o álbum não mergulha somente no individual. Ele pensa o coletivo de uma maneira a trazer seu impacto no espaço micro de convivência. Por isso se notam questões de anulação, pertencimento e necessidade de autoconhecimento transpiradas por versos de uma sutileza apaziguante através das interpretações de Jacomel.


Descompasso é, ainda, um material em que cada canção é um poema com vida própria, seja pela construção de linearidade ou não linearidade, ou mesmo pela escolha pensada das palavras para promover uma brincadeira fonética com suas pronúncias. Pela escrita ou pelo som, as músicas que compõem o EP podem dar azas às interpretações mil, mas sem fugir do propósito da relação com o caos interior.


Produzido e mixado por Henrique Meyer, o EP é um produto de texturas dilacerantes pelo seu tom cinzento e sofrido. Não à toa que, com o auxílio do profissional, ele transpira não apenas o indie rock, mas também o post-gótico com lo-fi, pitadas de post-rock e sutilezas new waves embebidas em um aroma soturno, quase mórbido.


Fechando o escopo técnico, vem arte de capa. Assinada por Ella Baffi, a própria obra faz com que o ouvinte seja invadido por uma energia tristonha. As tonalidades em preto e branco com menções de chuva conseguem transpirar uma intensa e inevitável melancolia. As árvores negras ao centro, no contexto, simbolizam pulmões já bem desgastados para fazer respirar um cenário urbano que o circunda.


Lançado em 02 de novembro de 2023 de maneira independente, Descompasso apresenta uma Lúbrica ultrarromântica que sofre, chora e se dilacera perante as doenças de um cérebro e coração em contexto urbano. O movimento e a superpopulação podem ser nocivos para aqueles que ainda não se encontraram ou não se entenderam. Essa é a angústia que transpira do EP de maneira visceral.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.