SadBoots - Eventide

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Nascida na mesma cidade que deu origem ao Sepultura, o SadBoots completa seis anos de vida com o lançamento do aguardado álbum de estreia. Intitulado Eventide, o trabalho teve seu processo de composição iniciado em meados de 2020, logo após o anúncio de Shoeshine, o EP de estreia do quarteto.


As pessoas são ouvidas conversando ao fundo, o que cria uma ambiência de centro urbano. Tal estética introdutória lembra vagamente aquela que compõe o início de Children Of The Dawn, single do Pink Cream 69. Quando um vocal árabe estridente surge como se vindo de uma estação de rádio surge, o ouvinte já recicla a desenvoltura de Scott Weiland no despertar de Dead & Bloted, single do Stone Temple Pilots. É então que a guitarra aguda e áspera de Lucas Brito surge rasgando o ambiente ao passo que a bateria de Gustavo de Angelis vai desenhando linhas pop que contrapõem o incitar de agressividade. Nesse ínterim é que um vocal de timbre intermediário preenche o escopo sonoro com uma cadência contagiante. É Lucas Gomes introduzindo um lirismo que descreve um cenário de tourada. Preenchida por uma atraente guitarra slide, Toreador acaba se estabilizando em um território blues rock grungeado e amaciado com uma ponte protagonizada pela linearidade quase boogie-woogie e por uma imersão no campo versado do francês ao estilo Talking Heads.


Uma sirene é acionada. É como um aviso de fuga, de rebelião. É então que um instrumental introdutório calcado em um hard rock estridente e swingado começa a ganhar forma. Trazendo um enredo que evidencia elementos da cultura pop ao mesmo tempo em que dialoga com a política movida a ganância, The Great Escape é ambientada em um cenário que remonta um cassino da década de 40 em que civis e figuras públicas dividiam o mesmo espaço em um jogo de apostas. Na música, é interessante notar o desejo desenfreado do eu-lírico de fugir daquele ambiente narcisista e capitalista junto de sua cara metade. The Great Escape ainda é agraciada pelo contraponto do baixo estridente de Filipe Sartoreto que insere pinceladas de stoner rock e por um refrão contagiante protagonizado por um entorpecente dulçor trazido pelo teclado de Luciano Porto.


A guitarra estridente introdutória cria uma linha que, repentinamente, traz à mente do ouvinte a melodia executada por Robby Krieger no amanhecer de Love Me Two Times, single do The Doors. Abraçado pelo riff encorpado e grave do baixo, o instrumento acaba dividindo o protagonismo melódico com o teclado macio durante a passagem ao primeiro verso. Recriando uma cenografia de velho oeste a partir de uma melodia que flerta com o folk, Soltice Queen é a história de uma mulher empoderada que retorna a uma vila pacata do interior. Uma personagem imponente cuja presença causa rebuliço na cidade. Contagiante, divertida e atraente, Soltice Queen é uma canção cômica, enérgica e swingada que se evidencia como primeiro importante single de Eventide.


O caxixi invade a cena já trazendo um compasso de swing nascente. É curioso como a forma como a percussão e o vocal se movimentam cria-se uma semelhança melódica sutil com o momento em que Ozzy Osbourne insere os vocais em War Pigs, single do Black Sabbath. De maneira surpreendente, a entrada instrumental traz uma cadência sonora que remete àquela criada pelo baixo de Jack White em seu single Lazaretto. Ao mesmo tempo, tal estrutura melódica traz o funk em evidencia de maneira a trazer influências nítidas do Living Colour. De levada marcante, Mynah Bird Song é uma música em que o eu-lírico dialoga sobre a relação com o tempo ao mesmo tempo que discute o propósito da vida e estimula a viver de forma o presente de forma consciente e intensa.


Trovões. Uivos do vento. O bater das janelas. O cenário é tenso e desconfortável. A guitarra que segue traz um senso de consciência provocante cuja estruturação sonora se deleita novamente sob a influência do The Doors. Ao fundo, o som do hammond causa um temor diferente, capaz de criar um desconforto no estômago ao passo que o lirismo vai tomando a forma de um enredo caótico e assombroso em que o eu-lírico foge de algo que lhe assusta e lhe representa perigo. Capaz de fazer o ouvinte sentir calafrios e o suor correndo sob a face em decorrência do excesso de adrenalina na fuga de um indivíduo onipresente, Something In The Storm consegue fazer o expectador ter sérias dúvidas sobre se os eventos narrados fazem parte de um delírio mental do personagem ou se são algo real de fato.


Uma bateria repicada já imprime uma levada swingada estimulante. Solitário, o instrumento é surpreendido por um eco que soa de outra dimensão pronunciado pelos backing vocals de Polly Terror e Ruth Flôres. De riff provocante, a guitarra vem entregar uma cor mais viva que acaba forçando todo o escopo a promover uma levada baseada na mistura de funk e rock alternativo. Bad Juju é, assim como Solstice Queen, mais uma faixa de Eventide em que o lirismo promove uma completa cenografia. Trazendo um cenário épico de piratas, a faixa traz uma figura fantasmagórica como personagem protagonista e ao mesmo tempo onipresente do enredo. A posição assumida pela entidade é semelhante àquela que Calypso assume no roteiro de Piratas do Caribe: No Fim do Mundo. Em Bad Juju a entidade é, inclusive, um espírito comumente presente em rituais pagãos.


O agudo do cowbell soa como se estivesse na atividade de recolher o gado. Uma quebrada brusca surge como uma rápida brisa. Silêncio. Uma levada hard rock com grande influência rítmica dos anos 70 entra em cena. Sua desenvoltura traz em si referências ao som efetuado pelo tanto pelo Rival Sons quanto pelo Led Zeppelin enquanto a distorção da guitarra é amplificada junto com a precisão dos golpes da bateria. Preenchida por linhas vocais com repentes de falsete, Silhuette In Blue é uma música que evidencia a superficialidade que emana da sociedade atual. Incluindo referências à moda e à postura de uma apresentação social montada, a canção discute a futilidade ao mesmo tempo em que aborda a falta de excentricidade nas pessoas como algo movido pela insegurança. 


É só a bateria. Ela ecoa pelo ambiente vasto de maneira a promover um som que se perpetua sem fim. A guitarra surge quase como uma pessoa ressabiada, com cabeça baixa e olhos tristes, cheios de uma lágrima indecifrável. Uma melancolia regida por um inicial rock alternativo se forma de maneira a promover um estranho senso de conforto. Intimista e introspectiva, Exodus é uma canção que reflete sobre o vazio existencial somado ao hipnotismo político. Hoje, inclusive, tal ato hipnótico é comumente observado através das fake news, um método desumano que torna as pessoas confusas e marionetes dos interesses da corporação partidária em exercício. De certa maneira, a forma como Gomes emite sua voz cria uma afinação grave que muito lembra o timbre de Supla


As baquetas formam um tilintar que funciona como a contagem do tempo para a entrada dos instrumentos. Após o quinto comando, uma cascata distorcida, grave e com um nascente swing surge através da guitarra. A sonoridade que dela se forma traz um parentesco interessante com o hard rock folkeado feito pelo Dirty Honey ou mesmo pelo Rush em seu single Limelight. Enérgica, sensual e provocante, ... In Lost Carcosa possui protagonismo absoluto do baixo nos versos de ar, o que causa um curioso tesão a partir de sua desenvoltura. Ingredientes novos inclusive passam a dominar as linhas melódicas amplificando a sensualidade e um senso de alegria. O trio de sopros formado pelo trompete, trombone e saxofone oferecido por Pablo Ávila, Mauro Moreira e Mariana Bosi, respectivamente, consegue, ainda, aumentar a energia provocante e criar um contágio irresistível entre o pré-refrão e a passagem para a segunda parte da faixa. De certa forma, ... In Lost Carcosa cria um interessante parentesco com Bad Juju ao ser ambientado em um cenário ‘piratesco’. O bar, a bebida e o homem mal que conquista o coração de uma donzela. 


A janela está entreaberta e as cortinas em tons brancos pálidos começam a bailar ao contato da brisa da manhã. Em segundos, a brancura do tecido começa a ganhar tons amarelados suaves ao passo que o Sol começa a surgir no horizonte. Um amornar reconfortante acaricia a pele descoberta entre os lençóis proporcionando um alento carinhoso e aconchegante. Vozes sem sentido pairam em primeiro plano como se fosse um despertador. O som da guitarra ao lado da agudez entorpecente do órgão hammond cria uma maciez que casa com a cenografia apaziguante. Eis que a guitarra assume uma distorção e chama a bateria e o baixo para golpes uníssonos enquanto baila pela superfície melódica. É assim que se forma um hard rock de sensualidade amplamente macia e contagiante. Wake Me Up At Eventide é uma música que narra a forma como o amor pode entreter e fazer as pessoas perderem a noção do tempo quando estão em um relacionamento de recíproco sentimentalismo de carinho e paixão.


Em meio a melodias bem estruturadas, Eventide se mostra um disco de sonoridade madura ao mesmo tempo em que recicla a ambiência do hard rock setentista em suas composições. Cativante e divertido, o álbum é um produto que mostra que o SadBoots possui capacidade incontestável de entreter não apenas pelos ouvidos, mas também pela imaginação.


The Great Escape, Solstice Queen, Something In The Storm, Bad Juju e ... In Lost Carcosa são ótimos exemplos de músicas cujos lirismos são tão bem estruturados que se tornam verdadeiras histórias que dão asas à criatividade imagética de cada ouvinte. São faixas lúdicas abraçadas por trilhas sonoras marcantes e difíceis de serem esquecidas.


De instrumental consistente e que se aventura pelos terrenos do hard rock, blues rock, grunge, stoner rock, funk rock, rock alternativo e do folk, Eventide apresenta uma mixagem cuja equalização dos atributos sonoros o faz ter uma qualidade muito superior da maioria das produções independentes atuais do Brasil. Isso se deve ao profissionalismo de Fábio Mazzeu, quem, além da mixagem, também ficou responsabilizado pela produção.


Fechando o escopo do álbum vem a arte de capa. Seu conceito ou sua informação são uma incógnita. Algo quase indecifrável e abstrato. Com criação de Maria Vaz e Gomes, ela chama atenção pelo tom alaranjado vivo que cobre a maior parte de sua superfície, a qual recebe pinceladas de um roxo místico aleatoriamente posicionadas. 


Lançado em 08 de abril de 2022 de maneira independente, Eventide é um disco de sonoridade consistente e lirismo lúdico. É um trabalho em que o lúdico encontra uma trilha sonora de qualidade. Um álbum que indiscutivelmente leva a produção independente brasileira para patamares internacionais.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.