Marillion - An Hour Before It's Dark

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Três anos após o anúncio de With Friends From The Orchestra, o quinteto inglês de rock progressivo Marillion retorna ao universo fonográfico com o lançamento de seu primeiro trabalho formado inteiramente por canções inéditas em seis anos. Saindo então do ambiente das adaptações em arranjos, An Hour Before It’s Dark segue a mesma trilha de Fuck Everyone And Run (F E A R).


É como uma imersão no inconsciente. Um sonhar acordado. A consciência desdobrada. Uma experiência astral que beira o transcendental. Em meio a uma sonoridade de extrema sensitividade que flerta com aromas místicos de comunidades xintoístas e budistas, o imaginário do ouvinte se percebe repleto de cores vivas que se misturam entre tons pastéis, quentes e frios de maneira a proporcionar explosões de uma paleta eclética. Eis que um coro gutural e de temática épica cujo idioma aparenta vir do latim imerge empregando grandeza e dramaticidade à melodia puramente sensitiva. Amplificando a tensão e o poderio de tal intensidade emocional vem um dedilhar suave e amaciado de notas graves que bailam de maneira sincrônica pelo céu crepuscular a partir do piano de Mark Kelly. Eis que repiques leves vindos dos golpes na caixa da bateria de Ian Mosley surgem entregando uma textura tátil e racional enquanto um vocal de timbre misto de agudez e gravidade é inserido na camada sonora. É Steve Hogarth entregando um lirismo de cunho reflexivo que trata pura e exclusivamente do autoconhecimento, da percepção do potencial destrutivo que as pessoas podem possuir consigo mesmas. Como primeira música do ato Be Hard On Yourself, The Tear In The Big Picture é uma canção que discute a essência mimada da sociedade por fazer e ter sempre o que deseja. Discute o senso desmedido de conformação, os impulsos, os interesses, as características que beiram o maquiavelismo e a capacidade do inconsciente em transformar as pessoas. 


Como um relâmpago que surge de súbito na escuridão entregando um clarão cuja intensidade apavora e faz as pupilas se dilatarem ao observarem o poder de sua descarga elétrica, a guitarra de Steve Rothery entrega certo tom de aspereza que, junto à doçura entristecida e levemente entorpecida das teclas do piano, faz com que aquele mesmo olhar pasmo perante a luminosidade intensa do relâmpago seja dominado por um brilho emocional que produz lágrimas abundantes de uma sensação inominável, mas de extrema intensidade. Sob um contorno mais concreto de rock progressivo, Lust For Luxury segue a base do enredo da canção anterior ao abordar, no cerne de sua narrativa, a questão do mimo inerente ao comportamento social. Contudo, por meio da experimentação de texturas a partir de uma sonoridade que mistura melancolia com um conforto amofrinado, a canção possui uma postura mais enfática e firme no intuito de frear a fala cheia de desejos e vontades egomaníacas do interlocutor coadjuvante. Lust For Luxury é uma música que discute a sede de poder guiado pelo vício em consumo, pela necessidade da posse de bens materiais. 


Um uníssono repentino surge. Tal punch é precedido por um suavizar de atmosfera enigmática, mas cujo teor reflexivo é latente. A melodia é de uma dramaticidade sinistra que, por tal motivo, beira um suspense penetrante. Ao fundo de uma melancolia doce se ouve vultos estridentes. É o baixo de Pete Trewavas entregando uma textura azeda que contrapõe tal intensidade entorpecente. De instrumental delicado, You Can Learn é a canção cujo lirismo demonstra esperança na humanidade. Uma canção que exorta uma visão positivista de que a sociedade adquira uma consciência comunitária suficiente para fazê-la perceber quais atitudes são genuinamente necessárias para fazer do mundo um lugar melhor.


Vozes de crianças brincando são ouvidas ao fundo enquanto um piano se pronuncia de maneira calma, nostálgica e melancólica. É como se o interlocutor visse tal cena a partir de uma parede feita de um fluido quase uterino dando menção a algo que não pode ser reassumido ou revivido. A memória de dias em que a ingenuidade e a pureza eram a base da identidade individual. Uma época em que a alegria era genuína e o sorriso, sincero. Um tempo em que não havia problema ou preocupação de algo insolúvel. Misturando uma ambiência rítmica post-punk ao estilo U2 e rock alternativo tal como o Shinedown produziu em seu single If You Only Knew, o Marillion apresenta Invincible, a primeira música de Reprogram The Gene, o segundo ato de An Hour Before It’s Dark. Discutindo questões atuais inerentes à sexualidade como transgenia e assuntos profundamente imersos no campo da crise climática, a faixa é de uma consciência humanitária e sociocultural gritantes. É como o efeito inverso do enredo espírita que narra o evento relacionado aos exilados da Capela em uma visão de purificação para que apenas as pessoas de bem e de visão de respeito sejam aceitas no Planeta Terra. “And all the strange human beings, who we once used to be, will be locked down”, reflete o personagem lírico sobre tal questão.


É como o ouvir de uma voz onipresente. É como se essa mesma voz fosse a voz da consciência agindo sobre o corpo. Regida por uma psicodelia inebriante, Trouble-free Life é uma canção que ainda traz muito da discussão presente em Invincible, mas insere novos temas. Junto então ao relacionamento com a natureza está o relacionamento com o tempo intrínseco ao ato do renascimento, o papel da liberdade. Trouble-free Life é uma canção que, sob uma melodia leve, a questão da insignificância do ser e da possibilidade do não ser lembrado.


De uma beleza heterogênea e uma melodia cativante, a sonoridade se pronuncia de uma maneira mais palatável. Caminhando livremente por roupagens como o britpop e a neo-psicodelia, A Cure For Us? discute o efeito do isolamento social imposto pela pandemia. Contudo, refletindo sobre as restrições de sociabilidade, o que o lirismo traz de mais importante no quesito do pensamento é o questionamento do que valeu o tempo de clausura para a forma como a sociedade funciona e a forma como ela se relaciona com o planeta. Daí, Hogarth se pergunta ininterruptamente: “is there a cure for us?”. A resposta, no entanto, não é dada.


É como o recobrar de consciência após uma noite ininterrupta de sonhos de extrema sensitividade. Os olhos, ainda mareados e embaçados, observam a paisagem que se desenha para além da janela entreaberta. O gramado ainda está úmido, mas já se apresenta banhado pela luz do amanhecer. O Sol é visto no horizonte enquanto as primeiras revoadas de pássaros são avistadas. Toda essa observação, feita em milésimos de segundo, é interrompida com o passar de mãos sobre os cabelos e um beijo reconfortante, angelical e maternal de bom dia. Isso é Only A Kiss, a primeira faixa de uma sequência independente inserida em An Hour Before It’s Dark.


Existe dramaticidade em meio à fluidez melódica. Por meio da linearidade sonora se percebe uma similaridade latente com a sonoridade executada pelo Live. A partir daí, se nota que a presente faixa é construída sobre uma mistura de rock alternativo e post-grunge de maneira a abraçar um lirismo atual e questionador. Murder Machines discute em primeira instância a impotência da humanidade frente a eventuais adversidades como a Covid-19. Discute a relação e a forma como a sociedade enxerga a vida. De maneira subliminar, mas com grande dose de seriedade, existe também, no lirismo, questões referentes ao medo da morte.


Um coro gutural desenha contornos de uma paisagem pacifista e religiosa. Assim como já vem sendo a marca do Marillion perante An Hour Before It’s Dark, a presente canção ganha pinceladas de uma dramaticidade que, aqui, é contagiante e proporciona um leve aroma épico. De sonoridade crescente, a canção segura firme na mão do ouvinte como um amigo que oferece o ombro ao outro. The Crow And The Nightingale é uma canção em que o personagem central se encontra em um profundo desamparo e desconectado da fé ao olhar o mundo e observar intensas atrocidades e um céu encoberto pela escuridão da maldade perpetrada pelos habitantes terrenos. Uma canção que funciona como um profundo desabafo sobre as imperfeições sociais.


Voz e piano. Minimalismo absoluto. Experimentação, sonoridade harmônica e uma narrativa quase bíblica. É assim que começa Sierra Leone, o novo capítulo do álbum. Puxado pela faixa de título Chance In A Million, ele se inicia com uma mensagem de esperança e simplicidade, mas cujo enredo se desenrola de maneira transgeracional. Afinal, a presente música conta a história de um vilarejo que por muitos anos viveu entre a luz e a escuridão procurando um determinado tesouro. Um tesouro que nunca seria encontrado por uma população que preza pelo materialismo.


Misturando blues com o post-rock, The White Sand mais uma canção do álbum em que existe a experimentação de texturas a partir de uma melodia amaciada, de cunho quase transcendental e cuja ambiência é reenergizante tal como um mantra de busca pelo caminho da verdade, da pureza e da sutileza. 


É como o amanhecer em um gramado preenchido por destroços de uma batalha recém-travada. O fogo ainda possui faíscas. As rodas das carroças ainda giram de maneira anacrônica. As bandeiras, rasgadas, ganham formas a partir da brisa fresca trazida junto de um Sol nascente. Contudo, a camada lírica de The Diamond é de uma história de intensa reflexão analítica. Se utilizando da figura do diamante como uma imagem alusiva à corrupção e ao aliciamento de almas ingênuas para com as verdades dos senhores do poder. Com o auxílio do mínimo e agudo sonar da guitarra, The Diamond é uma canção sobre libertação da mente.


Com dramaticidade controlada e uma sonoridade de cunho exotérico, existe aqui texturas de uma maciez embriagante, de uma imersão hipnótica no inconsciente. The Blue Warm Air é sobre uma raiva entorpecida, sobre a esperança de um amanhecer diferente, de um nascer do Sol repleto de um aroma socialmente reconstrutivo.


De súbito e sem proporcionar uma contextualização ambiente, o ouvinte é inserido em uma melodia baseada na sutileza do rock alternativo e na experimentação do post-rock. Como marca do quinteto inglês, More Than Treasure, a última música do ato Sierra Leone, é também abraçada pelo ingrediente dramático e traz de volta a imagem do diamante utilizada na faixa The Diamond. Aqui, porém, o objeto é evidenciado como um presente de Deus proporcionando uma clara alusão aos mandamentos bíblicos. É um objeto que simboliza o cerne humanitário, o espectro da pureza e da ingenuidade como sinônimo de bondade. E para amplificar essa mensagem esperançosa muito propagada durante todas as faixas do capítulo Sierra Leone, a guitarra oferece um solo melódico, emotivo, sensitivo e de uma textura confortavelmente aveludada como o aquecido adormecer em uma noite de frio intenso.


O suspense está no ar. Junto a ele, um groove compassado é desenhado de maneira que o swing ganha contornos bem definidos, mas ainda tímidos, quase entorpecidos. De base rítmica bem marcada pela linearidade precisa e grave do baixo, a canção ganha uma ambiência que beira a ficção científica com pinceladas de um temor realista. Maintenance Drugs, a primeira canção do capítulo Care, reside na reflexão da vida, do tempo que dela resta e da medicina promissora que busca incansavelmente o antídoto para o viver eternamente. A incerteza do tempo é o fator que faz com que cada momento seja extremamente valorizado de maneira que não haja arrependimentos. Uma importante faixa que, junto a títulos como Lust Of Luxury, Invincible, You Can Learn, Murder Machines e The Diamond, compõe o alicerce de músicas de impacto de An Hour Before It’s Dark.


Ao fundo, no horizonte, o Sol se evidencia tímido perante a neblina do amanhecer. O céu ainda é pincelado por pontos luminosos estelares que teimam em se manter visíveis mesmo com a crescente luminosidade do dia enquanto, agora, apenas o contorno da Lua minguante é identificável. Há uma energia de gratidão misturada com fé e esperança. A felicidade entorpecida sobre uma alegria quimicamente contagiosa por ver mais um alvorecer acontecer. Exotérica, dramática e reflexiva, a faixa-título é uma das músicas do álbum em que o Marillion mais experimenta as texturas sonoras. Uma canção que beira o agradecimento pela vida regida pela beleza pura em meio a uma sociedade guiada pelo consumismo, pelo sentimento de vergonha, pela frieza e falsidade emocional. Uma canção mântrica que flerta com o evolucionismo.


Como continuidade da faixa-título, a música seguinte começa com um resquício de explosão que se encaminha para uma melancolia dramática e reflexiva. Misturando elementos do rock alternativo com uma psicodelia profundamente densa que recria ambiências melódicas de canções do Pink Floyd, Every Cell é mais uma canção que imerge na pureza humana ao mesmo tempo em que percebe a possibilidade da mudança como possibilidade para trilhar um caminho positivista.


As notas agudas e sutilmente ácidas do teclado criam uma ambiência setentista que flerta momentaneamente com a estética da new wave. De repente, a sonoridade começa a tomar um corpo epicamente astral, exotérico, mântrico e religioso. Existe uma beleza entorpecida em cada sonar, existe pureza e existe certo suspiro gratificante que carrega um profundo e honesto agradecimento. Com efeito fade in, mais camadas sonoras começam a ser evidenciadas, como a bateria em suave crescimento e os acordes energicamente reconfortantes da guitarra. Angels On Earth é uma canção que presta uma sincera homenagem à linha de frente de combate contra a Covid-19. Médicos, enfermeiros, cientistas, biomédicos. “The angels in this world are not in the walls of churches. The angels in this world are not in the hall of fame”, exclama Hogarth em uma clara mensagem de que os verdadeiros heróis são pessoas comuns, de hábitos comuns e que sentem como qualquer outro. Ao mesmo tempo, Angels On Earth pode ser encarada como um enredo romanceado a respeito da morte, alcançada a partir de grande assistência e cuidado. Tal constatação é reforçada pelo verso “he wrapped his arms around me, she wrapped her arms around me” e pela estrofe “an angel here on earth came down here to carry me home , to carry me home”.


Com um brilho cheio de orgulho, ingenuidade e pureza, o olhar de uma criança observa, de pupilas dilatadas, o pôr do Sol. A sensação que rege seu emocional é gratidão e uma felicidade indescritível de estar podendo enxergar, para além das montanhas que cercam seu vilarejo, as revoadas de pássaro buscando abrigo para passar a noite. Um suspiro profundo. Um aroma crepuscular. O coração batendo. É a vida em seu máximo exercício. Essa é a máxima narrativa de An Hour Before It’s Dark.


Há muito que não se notava um trabalho que honrasse em todos os aspectos o conceito art rock. E o Marillion obteve o feito com o presente trabalho. Afinal, há ambiências clássicas fundidas em um caldeirão que ainda abriga efervescentes aromas psicodélicos, sombrios vindos do post-punk e de uma modernidade noventista a partir tanto da experimentação do post-rock, quanto da sutileza, veludo e calmaria do rock alternativo.


Inegável é também a constatação de que An Hour Before It’s Dark vai fundo na experimentação de texturas, ambientes e cenografias. Possibilitando ao ouvinte sensações nostálgicas, melancólicas, positivistas, esperançosas, gratificantes e, principalmente, reflexivas, o disco é alicerçado por enredos líricos fortes e potentes que transitam por imposições pensantes sobre a forma como a sociedade se posiciona perante a crise ambiental, a forma como a sociedade se posiciona como unidade comunitária, a forma como os senhores do poder regem a sociedade de maneira a torná-la refém de seus próprios interesses.


Há, intrínseco nos temas já citados, críticas ferrenhas ao recorte comportamental mimado da sociedade. Egomaníaca, ela é colocada como um organismo que é regido única e exclusivamente para si próprio e para alcançar seus objetivos de maneira individual e egocêntrica.


Contudo, os pontos centrais da narrativa de An Hour Before It’s Dark estão baseados na relação da sociedade para com o tempo e para com a vida. Em seus quatro atos apoteóticos e épicos, o disco traz uma narrativa enfática, mas de extrema sensibilidade ao analisar tais temas. Apesar da calmaria hipnótica, há um vociferar iminente que chama atenção para a urgência da transformação da mente de maneira a promover um senso de coletividade humanitária em prol de um bem comum.


Se continuar com os pensamentos mesquinhos, mimados, consumistas e de interesses individualizados, a sociedade não apenas regredirá em seu estado evolutivo, mas também verá uma estagnação na própria qualidade de viver e pensar. Essa é, inclusive, uma das conclusões a que se chega ouvindo atentamente às canções do álbum.


Não por acaso que, no caminho para se chegar ao veredicto da união dos quatro atos, faixas como Lust Of Luxury, Invincible, You Can Learn, Murder Machines, The Diamond e Angels On Earth são indispensáveis para o total entendimento da mensagem imediatista e humana deixada pelo álbum.


Lançado em 04 de março de 2022 via Racket Records, An Hour Before It’s Dark é uma ópera experimental sobre a sociedade, sobre as emoções, sobre a vida. Sobre o tempo. Um álbum com texturas variadas que emocionam, refletem, transcendem e chocam. O pensar é incômodo, mas com o novo trabalho do Marillion, as paredes da zona de conforto são brutalmente violadas.

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1 Comentários

Eu como fã apaixonado do Marillion❤, me senti representado por tão bela, profunda, sensível análise da mais recente obra de arte, da "minha Amada Banda"!
Todas as faixas foram analisadas em um tom, por uma paleta de cores vivas, reais, verdadeiras e atualmente presentes, no planeta musical azul.
Adorei, quando cita a obra literária, "exilados de capela", será que estamos próximos de uma transição parecida?
Que seja a música e toda a sensibilidade que suas notas vibram no universo, a doce trilha sonora para a transformação integral de uma Humanidade mais Fraterna.🙏🙌🙏
Marillion❤.. Amo tudo isso!🎶🎸

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.